A tendência natural de todo escritor é começar escrevendo de maneira semelhante à que fala.
Estamos imersos na linguagem oral desde que nascemos, desde as primeiras palavras que nos dirigem nossos pais. Primeiro, aprendemos a falar, a comunicarmo-nos através da emissão e articulação de sons.
O hábito da escrita só começa a surgir posteriormente, muitas vezes apenas quando passamos a freqüentar a escola. Por isto, quase sempre a competência de expressão escrita é inferior à competência oral.
As regras que regem a linguagem valem tanto para a fala quanto para a escrita, são exatamente as mesmas normas gramaticais. No entanto, o uso, a necessidade de comunicação rápida, ou mesmo vícios e corruptelas no interior duma comunidade lingüística afastam a escrita e a oralidade.
Por mais que a linguagem falada anteceda a escrita, isto não significa que esta deva reproduzir literalmente a primeira. São níveis de comunicação diferentes e, enquanto a escrita pode ser utilizada para meros fins comunicativos, a escrita literária transcende esta instrumentalidade. A Literatura comunica, mas sem perder os requintes, as sutilezas e a beleza da linguagem.
Até o século XIX, os limites entre a linguagem literária e a oral eram muito evidentes. Não era à toa que a literatura era conhecida como belles lettres, em oposição à escrita voltada para a simples comunicação de algo.
O modernismo do século XX surgiu em contraposição ao beletrismo, recorrendo, assim, a uma proximidade à língua do dia-a-dia, trazendo para a Literatura o mundano, o minimalismo, as imperfeições, o simplório, o feio. Apesar de haver expandido a compreensão do que é Literatura, a modernidade também instaurou a ausência de critérios de avaliação: tudo passou a ser arte, tudo passou a ser literário.
Assim como em todas posições antagônicas, o debate entre coloquialismo e purismo arrebanha seguidores nas duas direções. Os autores de orientação beletrista defendem uma autonomia da linguagem literária, enquanto que os de índole modernista trazem para suas páginas a língua ordinária.
Analisemos, então, alguns pontos que contribuirão para compreendermos como nossas escolhas influenciam nossa escrita.
1 - a literatura não é a realidade, portanto, não precisa ser regida pelas mesmas práticas, pelas mesmas leis, pelos mesmos princípios presentes no mundo real.
No mundo real, as performances lingüísticas costumam variar de acordo com nosso interlocutor: quando falamos com uma pessoa mais "simplória", há uma tendência a usarmos um vocabulário menos rebuscado, diante de interlocutores mais sofisticados, tentamos elaborar sentenças mais complexas.
Isto não é uma prática existente apenas entre os mais educados (educação formal), mas presente em todas as classes sociais. Basta assistirmos a um telejornal para ver como todos tentam "falar bonito", mesmo que acabem incorrendo em mais erros por causa disto.
Na verdade, esta nivelação lingüística é, em parte, uma prática inconsciente de rapport, de identificação entre os falantes. Lembro-me duma entrevista do Ratinho para o programa "Observatório da Imprensa", quando, um dos entrevistadores perguntou ao apresentador:
- No seu programa, você fala errado muitas vezes. No entanto, aqui, você não cometeu um único erro de português? Por quê?
Então, o Ratinho respondeu:
- Porque eu preciso falar igual ao meu público.
Ou seja, na vida real, a seleção de qual registro da língua utilizaremos influenciará no modo como seremos recebido por nossos ouvintes.
2 - Como a literatura não é a realidade, mas um simulacro, ela precisa estabelecer quais são as regras que a regem.
Se partirmos da lógica anterior, não há nada de errado em optar pelo coloquialismo, posto que o autor é o senhor do mundo literário que cria. No entanto, ele estará delimitando o horizonte de interpretação e de recepção da obra. Aliás, toda vez que um autor faz uma escolha, de tema, enredo, linguagem, ele já está delimitando seu público.
Um público em busca dum texto mais sofisticado pode não receber bem um texto coloquial, do mesmo modo que um leitor em busca de algo mais "real", pode não receber bem um texto formal. Quer dizer, é uma questão de escolha, de direcionamento.
Mas estas regras precisam estar claras e fazer sentido no interior da obra. É necessário haver coerência: um personagem não pode falar errado em certos trechos, mas falar certo (com as mesmas palavras) em outro, sem alguma razão óbvia.
Graciliano Ramos é muito hábil na hora de se apropriar destes dois níveis de discurso. Em "Vidas Secas", por exemplo, ele apresenta uma vida mental muito intensa em seus personagens, até para a cachorra Baleia, porém os personagens não possuem vocabulário para expressarem seus pensamentos, por isto, quase sempre os diálogos são lacônicos. Quer dizer, há uma ruptura entre pensamento e fala: em suas mentes, os personagens possuem um léxico e uma fluência que não correspondem ao vocabulário simples e pragmático da vida cotidiana.
3 - A língua é construída historicamente, por isso, o que é erro hoje, amanhã é norma.
Sem dúvida, este é o maior ponto em defesa do coloquialismo, pois muitas práticas consideradas erradas em autores pretéritos, hoje são normas gramaticais e ortográficas.
No entanto, há um problema bastante específico nesta mutabilidade da língua: várias expressões populares e gírias caem rapidamente em desuso, assim, rechear um texto com tais expressões pode empobrecer a compreensão dum eventual leitor futuro. Euclides da Cunha e Camões serão compreendidos por um leitor de língua portuguesa daqui cem anos, mas as músicas dum funqueiro provavelmente serão bem menos compreensíveis.
Eu, enquanto escritor, penso tanto no leitor de hoje, quanto o de amanhã, por isto, acabo escolhendo escrever dum modo a conceder maior durabilidade a meus textos. Lembro-me de muitas gírias minhas de infância que hoje nem são mais utilizadas e que até denunciam minha idade (beirando a casa dos 30).
Quer dizer, escrever "uma brasa, mora?" num texto que não seja histórico é uma autodenúncia, além de datar, às vezes equivocadamente, tal escrito.
Enfim, a escolha entre um tom coloquial ou formal na Literatura será um direcionamento de quem lerá nossas obras: quanto mais coloquial, mais acessível será para o leitor, porém, como a fala está em constante mutação, menor será a perenidade do texto; quanto mais formal ou rebuscado, maiores serão as dificuldades do leitor para assimilar o sentido, mas, a longo prazo, mais duradoura será a mensagem.
A opção lingüística pode até se fundamentar em princípios estéticos, mas suas conseqüências são bastante práticas e dizem respeito diretamente a que tipo de leitor — e de leitura — a obra se destinará.
Publicado originalmente na Revista SAMIZDAT
2 comments:
Excelente texto!
Obrigado pelos esclarecimentos
Muito esclarecedor o seu texto.Gostei!
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