(Este é o primeiro artigo de uma série sobre publicação independente na era digital)
A legitimação do mercado literário
Todo o mundo, ao começar a escrever seu primeiro livro, tem em mente o esquema clássico de publicação: autor => editora => livraria => leitor.
Quase ninguém questiona este modelo ao tentar ingressar na carreira literária e, para muitos, um autor que não seja publicado por uma editora comercial — ou uma “editora de verdade” — não merece ser lido.
O processo de concluir um livro, enviá-lo para ser avaliado por uma editora, ser aceito, assinar o contrato e chegar às livrarias é a primeira legitimação dum autor, é o primeiro grande funil entre os escritores. Entre os pretendentes a escritores e os poucos que fazem parte do catálogo de uma editora, há um cruel processo de triagem que nem de longe contempla o valor artístico ou o mérito literário dum livro.
O que estes autores, e os leitores também, parecem se esquecer é que as editoras e livrarias são empresas como outras quaisquer. Concordo que no interior dos bens materiais (os livros) estejam contidos valores imateriais (o que está escrito, os ideais, as teses, a concepção de mundo do autor), no entanto, o importante é que este bem material seja vendido; o objetivo principal do mercado editorial é vender livros, gerar lucro.
Por isto, pouco importa o valor literário duma obra, se ela não apresentar perspectivas de lucro.
Podemos dizer, então, que ser publicado por uma editora é, de fato, uma legitimação?
Sim, evidentemente: é a legitimação de que alguém dentro duma editora considerou seu livro vendável.
Nada mais do que isto.
É óbvio que passar por esta etapa inicial conduz a outros patamares de legitimação. A União Brasileira de Escritores – UBE só considera, por exemplo, escritor aquele que possui pelo menos um livro publicado. Neste sentido, escritores talentosíssimos que publicam na internet ou mesmo para si próprios não passam de meros diletantes.
Também é muito improvável que uma publicação de renome, como jornais ou revistas, dedique alguma atenção a autores não publicados. E não podemos nos esquecer dos grandes prêmios literários, que geralmente são concedidos aos melhores livros do ano, ou a autores com algum tempo de estrada e que já possuem vasto currículo literário.
Isto nos leva a concluir que apenas após passar no quesito vendável um livro pode ser considerado literário.
A publicação independente
Apesar do domínio que exerce, a existência do mercado editorial é algo relativamente recente, se analisarmos a História da escrita e da publicação. As primeiras evidências de escrita datam de 3500 antes de Cristo, enquanto que a forma do livro como códice ocorreu por volta do século I a.C.
Durante muito tempo, a escrita e o acesso a pergaminhos, manuscritos ou livros se restringia à classe sacerdotal e a alguns monarcas. O processo de produção de um livro era lento e dispendioso, isto até o advento da imprensa, invenção de Johann Gutenberg, em 1450. Esta foi a grande revolução na escrita e tornou o livro, se não acessível ao público, pelo menos viável comercialmente.
No entanto, apenas no século XIX, auge da era industrial, que a publicação de livros conseguiu reduzir drasticamente os custos de produção e abrir as portas para a cultura de massas.
O controle da cultura deixou as mãos do clero e de patronos aristocratas para pequenos editores ou grandes associações que impulsionaram a publicação de livros rumo ao mercado de consumo.
Então, a figura do autor publicado por uma editora (como Victor Hugo) dividiu espaço, pela primeira vez, com o autor independente, ou seja, aquele que custeia do próprio bolso a publicação de seu livro (como quase todas as obras de Friedrich Nietzsche), e com o autor-editor, aquele escritor que assume também o papel de editor de seus próprios livros e periódicos (como Balzac, Dickens e Edgar Allan Poe).
Estes três modelos ainda vigoram hoje em dia, mas as editoras comerciais acabaram se sobressaindo e obscurecendo os outros dois.
E como se caracteriza o autor independente hoje?
Assim como predominou no século XX, a publicação independente é tida como a via de acesso a uma editora comercial, ou apenas como publicação por vaidade.
No primeiro caso, o autor custeia a primeira tiragem de seu livro, na expectativa de chegar a alguns leitores, mas, principalmente, de atrair a atenção de editores. Este foi o percurso realizado por quase todos os grandes autores contemporâneos, os quais através de pequenas tiragens iniciais provaram a qualidade e a viabilidade comercial de suas obras.
No segundo caso, temos o escritor amador que encontra na publicação independente a possibilidade de suprir o desejo de ver seu livro impresso e vendido (ou distribuído gratuitamente) para amigos e parentes. Não há grandes pretensões comerciais ou literárias, apenas a necessidade de ter em mãos o resultado de meses de trabalho.
Todavia, ainda há um terceiro caso, e que resgata uma das propostas do século XIX, do autor-editor, que encontra na publicação independente uma via alternativa para consolidar sua carreira.
O autor-editor no mundo digital
A informatização se caracteriza como a maior inovação na publicação de livros desde Gutenberg. Nunca antes foi tão fácil, barato e rápido de se produzir e distribuir informação. A internet rompeu todas as barreiras geográficas e materiais do processo de publicação.
Por um lado, tem sido possível armazenar todo o tipo de obras, de todas as épocas, em todos os idiomas. Obras raras existentes apenas em bibliotecas pessoais ou livros pouco conhecidos podem ser encontrados sem dificuldades. O critério mercadológico deixa de predominar, e o valor histórico ou literário volta a ser mais importante. Sítios como os do Projeto Gutenberg (www. gutenberg.org), do Internet Sacred Texts Archive (http://www.sacred-texts.com/), do Perseus Digital Library (http://www.perseus.tufts.edu/hopper/), do Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/), entre vários outros, disponibilizam obras de domínio público, muitas que não são reeditadas há décadas por causa da pouca demanda.
Por outro lado, a internet permitiu, primordialmente através dos blogs, o nascimento e a divulgação de novos escritores, que encontraram na publicação virtual um acesso imediato a seus leitores, pulando o longo e excludente percurso que passa pelas editoras e livrarias. O autor da era digital fala diretamente para seu público e é, deste modo, igualmente autor e editor de seus textos, já que está sob seu poder determinar qual conteúdo será apresentado.
Além disto, a impressão digital tornou possível a publicação de livros em pequenas tiragens, o que facilitou a vida do autor independente na hora de distribuir seus livros em menor escala.
Contudo, mesmo com o surgimento de alguns autores de renome através da publicação e divulgação pela internet, o autor independente ou não publicado ainda é recebido com desconfiança em comparação àqueles publicados por editoras comerciais.
A falsa legitimação de qualidade das editoras ainda continua sendo a principal legitimação literária, mas que talvez esteja em vias de extinção. Mais do que nunca, a internet tem representado uma forte ameaça à onipresente cultura de massas.
(Publicado originalmente na Revista SAMIZDAT)
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