Qualquer escritor sabe, ou pelo menos deveria saber, que um título pode mudar toda a recepção de seu texto.
Um título como "A Maldição da Língua Portuguesa" é destes que atrairá todo os tipos de revoltados, professores de português e outros escritores, com sete pedras na mão, prontos para linchar o heresiarca.
Então, passado o furor inicial, é hora de botar panos quentes e tentar esclarecer o mal-entendido (?).
A Benção
A língua portuguesa é belíssima e, sonoramente, talvez seja uma das mais agradáveis. Há seis anos que moro fora do Brasil, e se há uma sensação que eu gostaria de ter pelo menos uma vez na vida, é a de ouvir o português com o ouvido que os gringos o escutam.
Os americanos são fascinados pela Bossa Nova e nos dizem que o português brasileiro é como se estivéssemos cantando, talvez porque a Bossa Nova é quase como se os cantores estivessem falando com este jeito malemolente do brasileiro.
Já os argentinos são deslumbrandos com o Brasil e muitos arriscam um português rudimentar com sotaque brutal. Dizem que é uma língua linda e são fãs da Xuxa e da Daniela Mercury. A rivalidade conosco é somente no futebol mesmo, de resto, eles adoram e consomem quase tudo que sai do Brasil e, quando podem, embarcam nas férias de verão para algumas das praias catarinenses.
O português realmente é uma língua linda e, assim como Fernando Pessoa, arrisco-me a dizer que "a minha pátria é a língua portuguesa". Não há como escapar disto: somos moldados por nossa família, pelo país no qual nascemos, pela escola, mas também pela língua que falamos, pois é através dela que apreendemos o mundo e por intermédio dela que nos expressamos.
Já tentei escrever alguns contos em inglês e traduzir outros, mas é antinatural. O português está em minhas veias e em minha mente, é a essência de quem sou como escritor, não há alternativa, é um caminho de via única.
Admiro aqueles escritores como Nabokov ou Beckett, que adquirem competência e maestria suficiente em outro idioma para serem capazes de escrever romances em inglês ou francês. Acredito que sejam necessárias décadas, pelo menos para mim, vivendo e convivendo com falantes de outro idioma, para um dia adquirir tal habilidade. O português está enraizado dentro de mim, fatal e inevitavelmente.
Todavia, literariamente o português é uma maldição.
A Maldição
(mapa do português no mundo: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f3/Map_of_the_portuguese_language_in_the_world.png)
Somos a ilha portuguesa na América Latina e Portugal é a ilha portuguesa na Europa. Somando todos os países falantes de português no mundo somos 236 milhões, a sexta língua mais falada no planeta e oficial em nove países, o que não seria nada desprezível se a maior parte destes países não fosse atrasada, pobre e com um número pequeno de leitores potenciais.
Além disto, não existe unidade entre estas nações, ao ponto de o português falado em outros países chegar a ser, em alguns casos, quase incompreensível entre si. As variações históricas e de colonização criaram vertentes deste idioma, com vocabulários próprios e até uma ortografia diferente, que uma medonha reforma ortográfica tentou unificar, sem sucesso até o momento.
Temos grandes autores canônicos, sem sombra de dúvida, como o próprio Fernando Pessoa já mencionado, que ouso afirmar ser o melhor escritor em português de todos os tempos e um dos maiores do mundo também. Há Camões, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e o nosso único prêmio Nobel, Saramago.
Esta lista é imensa, eu lhe asseguro, mas somente para nós, falantes de português, porque fora de nossas fronteiras, fora de nossa pátria linguística, pouquíssimos deles são conhecidos, e muitos menos ainda os lidos. Os únicos autores realmente presentes no exterior, isto onde quer que você ponha os pés, são Paulo Coelho e Saramago.
O primeiro, ainda a maior vergonha para a intelectualidade brasileira, é um fenômeno inquestionável de vendas. Seus enredos simplórios, a escrita pouco rebuscada e os temas espiritualizados atraíram uma legião de fãs e cruzaram as fronteiras do Brasil, quase num projeto de dominação global. As pessoas leem Paulo Coelho e se sentem bem consigo próprias, esta é a natureza do que ele escreve e imagino que seja parte do que o tornou famoso. São poucos os que gostam de ler, ou ver um filme, para se sentirem mal, para ficarem desconfortáveis, para se angustiarem, ou serem tomadas pelo "desassossego". Num mundo como o nosso, tão violento e sem esperanças, talvez muita gente necessite deste alento, falso suponho, de encontrar respostas na Literatura: que nem tudo está perdido, que existe algum sentido e que podemos ser felizes.
Já Saramago, porque um prêmio Nobel nas costas pode catapultar a carreira e as vendas de qualquer escritor, mesmo que a escrita dele seja a extrema oposta da de Coelho, densa, inquietante, confusa e que exige grande esforço do leitor.
Excetuando estes dois nomes, e algumas publicações esporádicas por editoras ou por universidades estrangeiras, a língua portuguesa praticamente inexiste fora dos países lusófonos. E neste ponto estamos muito atrás dos países hispânicos da América Latina, e também de países com muito menos falantes do que nós, como a Alemanha, a Itália, ou o Japão, mas que proporcionalmente possuem um público leitor muito superior ao nosso. E também corremos atrás de paisotes, como a Irlanda, com vários grandes autores reconhecimentos mundialmente, quatro prêmios Nobel de Literatura, vindos de uma ilha com menos de 5 milhões de habitantes, mas que falam inglês, a língua hegemônica em nossos tempos.
Mesmo assim, uma língua literária não se faz através de seu número de falantes, mas através de seu número de leitores de fato.
E some-se a isto uma educação precária, desde as primeiras letras, uma escolha equivocada de autores extemporâneos no ensino da literatura em língua portuguesa, famílias sem hábito de leitura, escritores sem hábito de leitura (o que para mim é o mais surpreendente), e um mercado literário totalmente provinciano e colonizado, então é possível ter um vislumbre da maldição que a língua portuguesa é na vida de seus escritores.
Escrevemos mal, escrevemos para poucos, escrevemos sem perspectivas alguma de publicação, e se o sucesso um dia ocorrer, será localizado regionalmente e quase insignificante.
A nossa língua é belíssima, repito, mas ser um escritor de língua portuguesa é praticamente um suicídio literário. Pois uma obra sem leitores não existe.
Resta-nos pouco a fazer... Continuaremos escrevendo, uma letra após a outra, palavra após a outra, construindo frases, parágrafos, páginas, livros, sempre insuflados por esta esperança que algum destes poucos leitores desta nossa pátria da língua portuguesa deite seus olhos sobre nossos escritos, e nos alegraremos genuinamente quando isto ocorrer.
4 comments:
Li. Bem clarividente.
Posso dizer, Joaquim, que a ideia deste artigo surgiu hoje de madrugada, após ler alguns comentários sobre um importante prêmio literário português.
E eu crente que as coisas eram um pouco diferentes por aí...
Abraços.
:>
Que excelente artigo! Muito lúcido, verdadeiro. Bom!
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