Sunday, March 09, 2008

A teoria do Humor

Henry Alfred Bugalho e Volmar Camargo Junior


"O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é", esta sentença de Millôr Fernandes, inspirada numa errônea idéia aristotélica — hoje se sabe que macacos, cães e até ratos também riem — escancara o caráter social do riso. A risada é um dos comportamentos humanos de regulação da interação social, facilitando a aceitação no interior duma comunidade.

Esse texto não tem a pretensão de ser um aprofundamento teórico sobre o assunto. A intenção aqui é meramente abordar o humor por um viés analítico, tomando como referência para um (possível) estudo de caso.

A Enciclopédia Encarta diz que o humor, compreendido em seu sentido amplo, é o texto informal cujo objetivo é divertir ou causar o riso. O humor penetra na ilusão e na imaginação, explorando as possibilidades de situações improváveis e de combinações de idéias, mas difere delas por estar preocupado somente com os aspectos cômicos destas situações imaginárias. Como são muito diversos os textos humorísticos, há também diversas teorias que podem explicá-los. Citemos algumas delas.

Aristóteles é, possivelmente, o primeiro teórico da narrativa que se tem notícia no Ocidente. Boa parte de seu esforço, pelo menos na obra "Poética", é de entender a arquitetura da tragédia, que, para ele, é uma forma de poesia superior às demais — à comédia e à epopéia —, por isto, ele aborda apenas periférica e negligentemente as características do nosso objeto, i.e., a comicidade da comédia.
Para o Filósofo, o que diferencia a comédia da tragédia e da epopéia é o objeto imitado: na epopéia, são retratados homens melhores do que nós, como os heróis míticos de Homero; na tragédia, são retratados homens semelhantes a nós, oprimidos pela vontade dos deuses, sujeitos às desventuras do destino; por fim, na comédia, são retratados homens inferiores, cujos baixos instintos, ao serem expostos ao ridículo, causam riso.

Esta perspectiva coincide em muitos aspectos com a Teoria da Superioridade: o riso é provocado pelas pessoas que apresentam algum defeito, se encontram em posição de desvantagem ou sofrem algum pequeno acidente. Segundo essa teoria, o humor advém de alguma forma de escárnio. O autor observa o objeto retratado de um ponto de vista superior, e seu público compartilha dessa visão. Um dos pontos mais importantes dessa tese é trazido por Alexander Bain: "não é necessário que uma pessoa seja ridicularizada. Uma idéia, instituição política ou qualquer coisa que exija dignidade e respeito também pode ser exposta ao ridículo". Outro ponto importante é encontrado na tese de Henri Bergson, cujo ideal são a adaptabilidade e a elasticidade – caracteres de seu terceiro principal conceito: a Élan Vital. O personagem cômico típico, segundo Bergson, contraria esse ideal. Nada mais é que um indivíduo excêntrico que se recusa a adaptar-se à realidade. A persistência em hábitos imutáveis, independentemente das circunstâncias, torna cômicos os personagens e as situações vividas por eles.

A Teoria da Incoerência assevera que o essencial para o humor é a mistura de duas idéias que são, conforme o que se sente, disparatadas. De acordo com tal teoria pode-se dizer que o humor consiste no encontro do inadequado dentro do apropriado. Segundo parte de seus defensores, o prazer da interpretação do texto cômico está em localizar os pontos de contato entre as idéias incongruentes, onde divergem e onde estão mescladas. Outros, alegam que essa incompatibilidade não se encontra apenas no âmbito textual, mas principalmente em como / por quem esse texto será recebido: vai do textual para o cultural. Isso explicaria por que uma dada anedota atingiria seu objetivo cômico em um dado meio e em outros, não.

A Teoria do Alívio alega que o humor questiona as exigências sociais convencionais. Existem barreiras sociais e ideológicas que censuram, por consenso ou por imposição, certos temas. Abordar esses temas, utilizando os recursos textuais humorísticos, é um modo de burlar essas barreiras. O humor resultante é causador de grande alívio, devido à fuga momentânea de sentimentos reprimidos. Essa teoria, reforçada sobretudo pelas descobertas de Freud no campo da psicanálise, assenta-se antes no prazer individual experimentado pelo receptor do texto cômico. Entretanto, situando-se mais na ruptura com as barreiras psico-sociais, é insuficiente para explicar o humor existente, por exemplo, em textos nonsense e em jogos de palavras.

Estas últimas duas teorias sugerem que não basta uma análise lingüística do texto cômico para compreender sua comicidade. Mikhail Bakhtin propõe uma investigação do discurso, a interação entre o social e o literário. Ao se debruçar sobre "Gargântua e Pantagruel", um dos ícones do realismo grotesco escrito por François Rabelais, Bakhtin percebeu que a obra cômica está situada no limiar entre o proibido e o permitido, no umbral do profano e do sagrado, daquilo reservado à vida privada e o que pode ser exposto na praça pública.

É neste trabalho que ele cunha o conceito de carnavalização, quando o mundo às avessas invade a vida cotidiana. Durante as festas populares na Idade Média e Renascença, ao homem do povo é concedida a liberdade à licenciosidade. Coroações satíricas, linguagem vulgar, sensualidade, ídolos, tudo isto é permitido nestes dias de festa. Através do carnaval, a ordem do mundo desmorona, para se renovar ao fim das festas. Deste modo, o riso estaria vinculado à substituição da ordem pelo caos.

Assim como qualquer outro, o objeto textual que se pretende cômico é apelativo ao conhecimento de mundo de um determinado público - e em sua composição está implícita a adesão do público a que se destina ao seu "universo" de significados. Por outro lado, os caracteres que provocam o riso não são de ordem lingüística. Exatamente por isso, não há uma teoria universal que possa dar conta de todas as possibilidades humorísticas dos textos cômicos porque essas possibilidades são inúmeras. Desse modo, podemos entender que o cômico não é simplesmente depreendido, como um aspecto imanente do texto; ele dá-se como um efeito da interpretação do texto feita pelo leitor. Por isso, devemos ter em mente que, antes de "conter" humor, um texto dessa natureza "produz" humor.

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Eu também quero me tornar um escritor


Cedo ou tarde, quase todo ser humano ouve o chamado da Arte.

As atividades consideradas como o legado dum indivíduo neste planeta — plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro —, fazem parte do anseio natural para driblar a finitude, para enganar a morte.
Nós, seres transitórios, buscamos na criação de algo perene a nossa própria perpetuação. Uma árvore, se não for derrubada pela marcha da civilização, certamente viverá mais do que qualquer ser humano; um filho carrega, em parte, os genes de seus pais, mantendo vivo o DNA dos progenitores, que hão de morrer um dia; e o livro, representando todo ofício artístico, é a ilusão de que nossas idéias também sobreviverão a nós, que serão compartilhadas pelos pósteros.
Por ser uma faculdade que cultivamos desde a infância, a escrita parece ser o meio mais fácil e certo para nos expressarmos artisticamente. Falamos, logo escrevemos; sem jamais nos questionarmos sobre a ruptura que existe entre estas duas instâncias: a fala e a escrita.
Não basta saber falar, nem ter sido alfabetizado, para se tornar um escritor; assim como não basta escrever para ser considerado um escritor.
Como qualquer outra forma de Arte, a escrita se sustenta sobre três alicerces.

Talento
Nenhum ser humano é igual a outro, cada um possui suas particularidades, sua visão de mundo, seus atributos, e cada um possui seus talentos.
Uns nascem com uma habilidade extraordinária para cálculos, outros com mão cheia na cozinha, outros com a capacidade para falar em público, outros para ajudar o próximo, outros para a música, e assim por diante. Para cada ocupação, dentro dum rol quase infindo de possibilidades, há um talento específico que faz com que seu possuidor se destaque dos demais.
Com a Literatura não é diferente.
Alguém que possui talento para a escrita — aquele respeito essencial pela palavra, aquela busca incansável pela perfeita expressão, pela frase bem construída, pelo signo que oculta, ao mesmo tempo em que revela, o sentido do mundo — larga na frente dos demais, para quem a escrita é apenas uma instrumenta cotidiana de comunicação.
A pessoa nasce com talento; esta qualidade não se aprende na escola, nem em oficinas literárias, nem através de livros. Talvez demore anos para se descobrir a existência dum talento; às vezes, a formação educacional, ou a busca por uma carreira que pareça ser mais vantajosa, relega o talento às profundezas do indivíduo, para que um dia possa despertar. Mas ele está lá, e todo mundo possui o seu (pelo menos, creio eu); pode não ser para a escrita, mas é para alguma coisa.

Dedicação
Qualquer atividade técnica exige um determinado grau de dedicação, isto é, o tempo e esforço que a pessoa pode despender para efetuá-la com maestria.
Uma casa não se constrói num dia apenas; são necessários dias, semanas, meses, preparando o alicerce, pondo tijolo sobre tijolo, fazendo o acabamento; uma colheita também não se faz num dia; é preciso arar a terra, semeá-la, proteger a plantação das pestes.
Ninguém obtém bons resultados na Literatura se não dedica parte de seu dia para se aperfeiçoar, estudar, escrever, revisar. Quem pensa que a escrita é pura obra do acaso, mera conseqüência dum arroubo de inspiração, está mal influenciado. O Romantismo é responsável por disseminar esta idéia, mesmo que, posteriormente, tenha se descoberto que os próprios autores românticos, como Goethe, Schiller, Hoelderlin, ou Vitor Hugo trabalhavam arduamente sobre seus textos, sem auxílio algum de musas inspiradoras.

Vocação
Às vezes um sujeito possui talento, dedica-se ao ofício, mas não possui vocação para fazer desta atividade sua profissão.
Não é fácil ganhar o pão com a escrita, inclusive, há uma referência clássica sobre a vida dura dum escritor:
"Aluísio Azevedo é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa de sua pena. Mas note-se que apenas ganha o pão, as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga."
A citação é de 1896, mas a realidade não mudou muito desde então. Alguns poucos fazem rios de dinheiro com Literatura, mas a enorme massa de escritores continua recebendo migalhas por suas obras, isto se receberem algo.
Nem todos estão preparados para fazer da escrita sua cruz diária, ser mal remunerado, gastar meses escrevendo um livro, sendo que dificilmente receberá condizente ao esforço empreendido, alimentar sonhos de fama e reputação e, no final das contas, não obter nenhuma das duas.
Quem possui vocação para a escrita, suporta tais dificuldades com prazer, pois é incapaz de ser feliz fazendo outra coisa; mas, para a maioria, escrever jamais deixará de ser um hobby.

A hipótese dos dois alicerces
Até onde percebo, é possível alguém ser bem-sucedido possuindo apenas dois dos atributos mencionados acima.
Alguém com vocação e dedicação pode ir muito mais longe numa carreira do que uma pessoa talentosa, mas que não se aperfeiçoa. Ou talento e dedicação combinados podem fazer deste escritor um amador de alto nível, que pode não ter nas Letras sua renda principal, mas angariar alguns leitores e até fazer um troco paralelamente. E quantas histórias não ouvimos de artistas profissionais talentosos, porém se nenhuma disciplina?
Um só destes alicerces não sustenta uma carreira, já os três deles geram um escritor de primeira linha.

O quarto elemento
Por fim, o quarto elemento, que pode significar apenas a coroação dum escritor completo, mas que também basta por si é a sorte; e por sorte podemos entender muita coisa — estar no lugar certo e na hora certa, ser amigo de alguém influente, abordar um tema polêmico e fazer sucesso por causa disto, ter uma biografia interessantíssima, que torna o autor mais importante que a obra, entre várias outras circunstâncias que podem influenciar positivamente, mas que estão para além da capacidade individual do escritor.
É o famoso golpe do acaso, a Roda da Fortuna, a estrela de que tanto falam.

Um escritor pode construir uma carreira sólida, trabalhando anos a fio para compor sua obra, batalhando para se firmar, enquanto que outro escritor, sem talento, sem dedicação, sem vocação, surge do dia para noite, por obra da sorte, e faz sucesso. São aqueles eventos inexplicáveis, fenômenos instantâneos. No entanto, se este privilegiado pelo destino não possuir conteúdo, não permanecerá; sumirá tão rápido quanto surgiu, sem deixar um único vestígio de sua passagem.

Conclusão
Sem dúvida, você já deve ter ouvido o velho papo de que basta buscar seu sonho para alcançá-lo. Esta conversa de almanaque zodiacal ou de livro de auto-ajuda é muito bela e estimulante na teoria, mas, na prática, uma carreira, independente de qual for, não se mantém se inexistirem as bases.
Entre tocar “Parabéns pra você” no piano e tocar um concerto no Carnegie Hall, há um universo de possibilidades, e por detrás de cada sucesso há muito trabalho, muito esforço, muitos sacrifícios. Todos almejam chegar ao topo da montanha e observar o mundo do alto, mas a escalada é a parte mais complicada e nem todos são capazes.

Quase todo mundo ouve um dia o chamado da Arte, mas suportar o peso desta responsabilidade não é nada fácil.
É a vista de sobre as montanhas que faz esta luta valer a pena.

Publicado originalmente em SAMIZDAT
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