Friday, July 31, 2015

Como a obsolescência está salvando a minha escrita

Henry Alfred Bugalho

A internet é uma maldição disfarçada de benção; é o que estou concluindo neste exato instante.

Foi um percurso progressivo. Em 1994, quando comecei a usar a internet pela primeira vez no trabalho, ela devia ocupar uma fração insignificante do meu dia. Afinal de contas, nem havia tanto o que se ver on-line.
Depois vieram as salas de bate-papo e o ICQ, varando a madrugada conversando com desconhecidos de todo o lugar do mundo. Mas isto era feito apenas depois da meia-noite, pois, com a conexão discada, você só pagava um pulso telefônico, senão a conta de telefone pararia nas nuvens.

A socialização da internet também significou a ruptura com a vida real fora dela. Tudo hoje é mediado pela rede: o que fazemos, comemos, vestimos, onde estamos, para onde fomos, o que vamos fazer.
Nossas existências não valem de nada se não forem compartilhadas nas redes sociais. A vida real não existe mais paralelamente à rede; elas estão entrelaçadas de um modo indistinguível.

Além disto, e como parte deste processo, vivemos na era da obsolescência. Toda nova tecnologia lançada hoje, amanhã já está ultrapassada, obrigando-nos ao consumo desenfreado para nos manter atualizados.
É um ciclo interminável e sufocante. Comprar, comprar, comprar. Mas tornando-nos sempre irremediavalmente obsoletos.

Eu trabalho on-line, mas, nos intervalos (ou simultaneamente a) do que deve ser feito, há todo um desperdício de tempo com aquilo que nos distrai. As notificações do Facebook, os e-mails que chegam sem parar e a avalanche de spams, a porra do Whatsapp sempre apitando, os comentários no blog, as notícias nos jornais, os vídeos no Youtube, ou qualquer coisa mais entretida do que o trabalho que devemos realizar.

Quando anos atrás li uma entrevista com João Ubaldo Ribeiro, "A Internet é a Perdição do Escritor", na qual ele afirmava que mal conseguia escrever por causa da internet, pensei que fosse um fenômeno que só realmente afetaria aqueles pertencentes a outras gerações, que não cresceram neste ambiente digital, que não estavam psicologicamente preparados para este mundo de distrações.
Entretanto, logo comecei a ouvir mais e mais reclamações de autores da minha idade sobre o mesmo problema, até que, enfim, eu também me senti afetado.

Os últimos meses foram devastadores para a minha produção literária. Semanas sem conseguir escrever uma única linha de ficção. Um desânimo sem fim, alimentado pelas distrações on-line.
É evidente que não poderíamos pôr toda a culpa na internet. Desde que meu filho nasceu, a minha rotina mudou drasticamente e, em seguida, senti que a minha relação com a escrita havia se desgastado.
No fundo, a culpa era inteiramente minha, mas a internet servia de catalisador.


Ao ouvir falar da Freewrite (antigamente conhecida como Hemingwrite), uma máquina de escrever digital para os tempos modernos, sem acesso à internet e que permitiria que seus usuários se concentrassem somente na escrita, logo pensei: está aí exatamente o que eu preciso!
Mas a Freewrite é um artigo de luxo para a maioria de nós. Seu preço de lançamento ficará na faixa dos 400 dólares. Convenhamos que é um valor considerável para um dispositivo dedicado à escrita, esta profissão ingrata que geralmente mal serve para pagar as contas.
Então, semana passada fiquei sabendo do AlphaSmart, que nada mas é do que um teclado com um visorzinho, e que serve apenas para isto: escrever.
O fabricante deixou de produzir estes dispositivos há alguns anos, mas, em seu auge, o AlphaSmart também tinha um preço alto, de aproximadamente 200 dólares.
Era um produto voltado principalmente às escolas e, aparentemente, era bastante popular nos EUA e na Europa.
Hoje, pode-se encontrar no eBay vários modelos por preços bastante acessíveis, mas confesso que fiquei com um pouco de medo a princípio.
Valeria a pena pagar 35 libras em uma porcaria destas?
Faria alguma diferença de fato nos meus hábitos de escrita ou seria apenas mais um cacareco a ficar sendo jogado de um lado ao outro pela casa?
Resolvi me arriscar...

Em três dias, escrevi umas 10 mil palavras, o que é muito mais do que consegui produzir em meses.
Pode ser apenas a empolgação da novidade, mesmo sendo um dispositivo obsoleto, mas o fato é que é extremamente prático para escrever.
Primeiro, porque me liberta das distrações da internet; são momentos que estou totalmente concentrado no que estou fazendo, e não há outra opção senão escrever.
Mas então alguém poderia argumentar: mas basta desligar o computador ou o notebook da internet.
Talvez, mas com o AlphaSmart, eu posso simplesmente me sentar em qualquer lugar sem me preocupar se o meu filho não vai pular no meu colo e quebrar alguma coisa, pois foi uma aquisição barata e também parece ser bastante resistente; lembre-se que era para as escolas, e alunos não são criaturas muito cuidadosas.
Além disto, pelos comentários que li, as pilhas duram uma eternidade (alguns mencionaram até mais de um ano sem trocá-las), ou seja, não é preciso ficar se preocupando em recarregá-lo ou ligá-lo na tomada toda hora.
Já escrevi com ele na minha mesa de trabalho, no sofá, sentado no quintal e, neste momento, estou com ele na poltrona enquanto meu filho brinca ao meu lado.
E para passar o texto para o computador é a coisa mais simples deste mundo, basta conectar o cabo USB e assistir enquanto tudo aquilo que você vomitou inconsequentemente no teclado é redigitado no processador de texto.
Eu lhe asseguro que a qualidade do que você escreve cai bastante quando a produção diária aumenta deste modo vertiginoso.
Mas a escrita é um exercício. É preciso mergulhar fundo no lodaçal para conseguir chegar a algum lugar. Em meio a tantas palavras, certamente haverá alguma que mereça ser lida por alguém.
Este tipo de processo criativo é somente para a escrita. Depois vem a edição, que é quando você separará o que merece sair para o mundo.

Até quando continuará esta empolgação?
Não tenho como dizer, mas se o AlphaSmart me ajudar a acabar o romance que tenho escrito intermitentemente durante os últimos sete anos, já terá valido muito a pena.
Terá ressuscitado um pouco daquele ímpeto criativo que eu pensava estar morrendo, mas que, no fundo, só estava meio dormente. Terá salvado, mesmo que temporariamente, a minha escrita.

Referências

Entrevista com João Ubaldo Ribeiro
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/147801_A+INTERNET+E+A+PERDICAO+DO+ESCRITOR+

Freewrite (máquina de escrever digital)
https://astrohaus.com/

Teclado sem @ (artigo de André Timm sobre sua transição para uma máquina de escrever [analógica])
https://medium.com/@andretimm/teclado-sem-75846f2107ad

Thursday, July 09, 2015

O que faz de alguém um escritor?

Henry Alfred Bugalho

Escritor é aquele que escreve, mas qualquer um que escreve é escritor?

Durante muito tempo, tive vergonha (ou pudor) de me reconhecer como escritor. Afinal de contas, eu ainda não havia publicado nada e nunca havia ganhado um centavo sequer com a escrita.
Só comecei a me sentir confortável com este título quando realmente passei a vender meus livros, ao perceber que não bastava escrever; que era preciso ser lido também.

Então, deste momento em diante, quase todas as vezes que me perguntavam o que eu fazia para viver e eu respondia que era escritor, recebia a réplica inevitável:

"Que legal! Eu também escrevo!"

Esta é a primeira lição que você deveria aprender ao se tornar um escritor: todo mundo também escreve.
Suspeito que haja outras profissões nas quais qualquer diletante também se arroga ter competência para tal: cantor, jogador de futebol, ator, comediante, músicos em geral.
Neste nosso mundo digital, em que qualquer amador pode, pelos canais não tradicionais disponíveis, acabar se profissionalizando - e este também foi o meu caso -, houve um nivelamento para baixo. Todos são iguais, porém mediocremente iguais.
Nos anos que tenho editado uma revista literária, tive a oportunidade de ler materiais extraordinários, de autores desconhecidos ou diletantes que escrevem muito melhor do que eu suponho escrever, mas também pude constatar que há muita gente que não tem noção do que é dedicar seu tempo e sua vida para a construção de uma carreira literária.
Escrever bem não basta, aliás, hoje acredito que nem é um pré-requisito.
Ser talentoso não basta.
Acreditar em seu potencial não basta.
Ter apoio de amigos e parentes não basta.
Publicar não basta.
E a lista de tudo que não basta é infinda.
O que distingue um escritor daqueles que simplesmente escrevem é uma obstinação que não pode ser mensurada; um fogo interno que o alimenta mesmo quando há quase nenhuma esperança.
Um escritor tem um compromisso com a escrita que vai além da publicação, da fama, do dinheiro que provavelmente nunca virá e da aclamação da crítica.
O que importa é o que está traçado nas páginas escritas.

Tento me pôr no lugar daqueles grandes que jamais obtiveram reconhecimento literário em vida, como Kafka, Fernando Pessoa ou Edgar Allan Poe.
O que os movia? O que lhes insuflava ânimo para um novo dia de labor criativo? Reconheciam-se eles como escritores, ou digladiavam-se contra a incerteza que ocasionalmente assola a todos nós?
Escrever é mais do que simplesmente escrever, e também é mais do que autoproclamar-se escritor.

Mas o que é, enfim?

Talvez seja uma certeza fugidia que se encontra em cada linha deitada ao papel.
Uma irremediável sensação de ser um embuste.
O medo de jamais conseguir expressar o que deve ser expressado.
É um ser e um não-ser.
Fracassar, fracassar, fracassar e fracassar novamente.
E apesar de todos os seus erros e deslizes e incertezas, constatar que não poderia ter sido diferente. Era o que e como tinha de ter sido.
Escrever sim. Escrever sempre. Escrever porque.

Imagem: https://emocaoeeuforia.files.wordpress.com/2012/10/portrait-of-fernando-pessoa-1954-2.jpg

Friday, July 03, 2015

O pecado de não escrever sobre o Brasil

Henry Alfred Bugalho

É difícil avaliar o estrago que a frase "Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia" de Tolstói causou no imaginário coletivo da literatura.

Se fôssemos interpretar esta recomendação de um modo que não literal, suporíamos que tem a ver com a noção de Mark Twain: "Write what you know" (Escreva sobre o que você conhece).

Embora elas pareçam estar muito próximas, - afinal de contas, o que você conhece melhor do que sua própria aldeia? E que maneira melhor para falar sobre todas as pessoas do que falando das pessoas que você conhece, posto que, essencialmente, somos todos iguais? - há uma extrapolação desnecessária de uma para a outra.

Poderíamos citar uma variedade de casos de autores que seguiram à risca esta recomendação de Tolstói.
Grande parte das obras de James Joyce (Dublin), Dalton Trevisan (Curitiba), Charles Dickens (Londres), Érico Veríssimo (Rio Grande do Sul), Charles Bukowski (Los Angeles), Patrick Modiano (Paris), Jorge Amado (Bahia), entre vários outros, revolvem ao redor de suas aldeias, mesmo que estas aldeias sejam metrópoles com milhões de habitantes ou vastas regiões geográficas que eles conhecem bem.
Estes exemplos passam-nos o retrato incorreto de que este é o único modo de se aprofundar no espírito de um local ou população. Fugir disto seria uma deslealdade.
Um indivíduo pode conhecer tudo sobre a Grécia Antiga, seus mitos, histórias e personagens, sem jamais ter posto os pés na Grécia atual, sem jamais ter saído de sua aldeia, aliás, conhecendo-a melhor do que a sua própria cidade-natal. Não há absolutamente garantia alguma que conhecemos melhor nossa aldeia de modo que possamos falar com propriedade sobre ela e, assim, atingirmos algum nível de universalidade.

Recentemente ouvi que os editores brasileiros descartam imediatamente qualquer original que tenha personagens com nomes estrangeiros ou ambientados em outros países.
Eles devem ter suas razões para isto, pois não me parece sensato nem profissional abandonar um livro somente por este motivo, mas isto certamente revela também uma concepção enraizada no mercado brasileiro de que autor brasileiro bom tem de falar sobre o Brasil, ou pelo menos com personagens brasileiros, mesmo que seja em um ambiente estrangeiro (em Budapeste, de Chico Buarque, ou em Vidas Provisórias, de Edney Silvestre).
Logo me vem à mente Shakespeare. Suas biografias não informam se alguma vez ele viajou para fora
da Inglaterra, mas isto jamais o impediu de escrever, de maneira extremamente competente e universal, sobre a Dinamarca (Hamlet) ou a Itália (Verona, em Romeu e Julieta, Veneza, em Otelo, e Roma Antiga, em Júlio César e em Antônio e Cleópatra), isto para citarmos apenas algumas de suas peças.
Outro mestre que jamais teve qualquer receio de escrever em ambientes internacionais foi Jorge Luis Borges, sobre a Irlanda, Babilônia, China, Grécia, França, Inglaterra, Alemanha, Oriente Médio, entre vários cenários exóticos, mitológicos ou imaginários, com personagens das mais distintas nacionalidades, com elementos de uma vasta gama de culturas. Isto não foi um obstáculo para que ele escrevesse extensivamente também sobre Buenos Aires ou a Argentina, ou de ser considerado como um dos maiores expoentes da literatura de seu país.
O monumental romance 2666, considerada a obra-prima do chileno Roberto Bolaño, é uma verdadeira salada de personagens e ambientações internacionais, embora haja um personagem chileno perdido no enredo.
Mesmo entre os ganhadores do prêmio Nobel encontramos exemplos de narrativas que extrapolam os limites de suas aldeias: tanto o alemão Hermann Hesse (Sidarta) quanto o britânico Kipling (Kim e Livro da Selva) se inspiraram na Índia, o português Saramago (Evangelho Segundo Jesus e Caim) na mitologia bíblica, o peruano Vargas Llosa (Guerra do Fim do Mundo) escreveu um romance inspirado na Guerra de Canudos, e o sul-africano J. M. Coetzee (O Mestre de Petersburgo) um romance tendo como protagonista Dostoievski e ambientado na Rússia.
Isto porque nem estamos mencionando histórias que se passam em universos completamente fantásticos e imaginários, como a Terra-Média, Nárnia, Westeros, em outros planetas ou dimensões, em algum lugar indefinido no passado ou no futuro.
Além disto, algumas tramas de Kafka (Metamorfose e O Processo) ou de Beckett (Esperando Godot ou em sua trilogia de romances) não possuem qualquer tipo de ambientação específica, podendo ser transpostas para praticamente qualquer país ou cidade.

É evidente que, ao tentar se escrever sobre um país estrangeiro, corre-se o grande risco de recorrer a estereótipos étnicos e nacionais, mas o que é mais estereotipado do que a quadra clássica da literatura nacional de selva, sertão, praia e favela?
E o que é mais tedioso do que a tendência autorreferencial atual entre os escritores brasileiros, escrevendo sobre escritores de classe média escrevendo um livro, pois o que conhecemos melhor do que a nós mesmos e aquilo que nos circunda?

Parece-me que o que é bom para os outros, não serve para nós, fadados a escrever irremediavelmente sobre nossas próprias aldeias.
Para um brasileiro, não há futuro além das fronteiras.
Nossa nacionalidade é também a nossa prisão criativa.
Pintar algo que não seja nossa aldeia é inconcebível, com a maior punição possível: o descarte. Não merece sequer ser avaliado.

fonte da imagem: http://footage.framepool.com/shotimg/qf/474462139-earth-orbit-earth-planet-sfere-form-black-color.jpg
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