Monday, December 20, 2010

As regras de Vonnegut para escrever contos

Seguem algumas dicas para escrever contos, da antologia "Bagombo Snuff Box" de Kurt Vonnegut .

1. Utilize o tempo de um completo desconhecido de um jeito que ele não sinta que foi tempo desperdiçado.

2. Dê ao leitor pelo menos um personagem com o qual ele/ela possa se identificar.

3. Cada personagem deve querer algo, mesmo que seja apenas um copo d'água.

4 . Cada sentença deve fazer uma destas duas coisas - revelar o personagem ou avançar a ação.

5. Comece o mais perto possível do final.

6. Seja um sádico. Não importa quão doces ou inocentes sejam seus protagonistas, faça com que coisas horríveis ocorram a eles - de modo que o leitor possa ver do que eles são feitos.

7. Escreva para agradar apenas uma única pessoa. Se você abrir a janela e fizer amor para o mundo, por assim dizer, sua história pegará pneumonia.

8. Dê a seus leitores o máximo de informação possível o mais rápido possível. Que se dane o suspense. Os leitores devem ter uma compreensão tão completa do que está acontecendo, de quando e do porquê, que eles mesmos poderiam terminar a história, deixando as últimas páginas para serem devoradas pelas traças.

Texto original extraído do blog Boing Boing, de Cory Doctorow.

Wednesday, December 15, 2010

Autopublicação: a odisséia de uma grande tiragem independente



Enquanto escritor, eu sempre repeti que jamais pagaria para ser publicado. Justamente por isto que, durante anos, divulguei meus trabalhos apenas pela internet, tanto através de blogs quanto em sites de relacionamento. A internet é uma grande aliada do autor iniciante, pois fornece uma plataforma gratuita e que pode ser acessada por qualquer pessoa em qualquer parte do planeta (se excetuarmos aqueles países onde ainda vigora algum tipo de censura).
A etapa seguinte nesta trilha da autopublicação foram os livros (e-books) e as revistas digitais, ainda distribuídas gratuitamente. Também vendia alguns poucos livros impressos no regime sob demanda, mas como os valores eram em dólares e o frete dos EUA para o Brasil impraticável, apenas poucos leitores arcavam com o preço.
A minha política de jamais pagar para ser publicado se fundava num raciocínio pragmático: pagar uma tiragem grande é queimar dinheiro, se você não tiver leitores suficientes ou um eficiente canal de distribuição de seus livros. Não adianta nada pagar 10 mil reais, vender uns 100 exemplares (quando muito!) e amargar um estoque de 900 livros empoeirando no canto de sua sala.
Se não existir uma perspectiva real de vender pelo menos 60% da tiragem, penso que não vale à pena. Alguns acreditam que basta apenas pagar os custos da tiragem, já que publicam somente para ter o prazer de segurar o livro impresso em mãos, mas, para quem pretende viver da escrita, pagar os custos não é sinônimo de pagar as contas no final do mês.

Preparando o livro para uma grande tiragem

Se você distribui seu livro como um e-book, ou até mesmo sob demanda, provavelmente dará pouca importância para aspectos gráficos, como design ou a capa do livro, talvez até menospreze também a importância da revisão. Como quem está pagando a conta não é você, tanto faz o resultado final.
No entanto, a partir do momento em que se tira a carteira do bolso, e não é pouco o que se paga para publicar um livro, tudo o que você mais quer é ter a obra mais perfeita possível.
Portanto, se você não é um designer de livros, ou não pretende dedicar muitas e muitas horas para aprender este ofício e conhecer seus respectivos softwares, o melhor mesmo é contratar alguém para fazê-lo. E não é barato!
Existem vários tipos de profissionais, que cobrarão preços bastante diferentes, mas até um aluno recém-formado de design pode querer meter-lhe a faca quando você solicitar o orçamento. As duas alternativas mais baratas são: procurar um amigo designer para ajudá-lo (tentando pagar menos), ou procurar um designer no exterior. Nos EUA, os custos de um diagramador e de um capista são bem inferiores aos praticados no Brasil, no entanto, se você contratar o mesmo profissional na Índia, com uns 200 dólares você está feito!
Para se ter uma noção, certa vez pedi um orçamento para a capa de um livro meu para uma editora recém saída da faculdade, uns 5 anos atrás, e o valor pedido era de 1400 reais. Felizmente, tive bastante tempo para estudar um pouco de design e poder fazer eu mesmo, de maneira bastante satisfatória, a diagramação e a capa de meus próprios livros.
O mesmo vale para o revisor. Existem preços bastante diferentes, que são por página, e você terá de calcular o que cabe no seu bolso.

Escolhendo a gráfica

A recomendação inicial, na hora de escolher uma gráfica para imprimir o seu livro, é fazer orçamentos em várias, quanto mais, melhor. Além disto, é importante verificar a qualidade de trabalhos já impressos por elas. Comumente, eles tem algumas amostras de livros, assim você pode checar a qualidade da impressão, o tipo de papel, o acabamento e a capa.
Solicite também orçamentos para quantidades diferentes, por exemplo, para mil, dois mil e cinco mil exemplares, e para impressão em preto e branco ou colorida, caso seu livro tenha imagens ou fotos. Como o valor unitário do livro cai quanto maior for a quantidade impressa, talvez compense imprimir mil livros à mais, se você tiver a certeza de que as vendas serão boas.
Depois de receber os orçamentos, comparar os preços e os serviços, faça uma pesquisa na internet sobre as gráficas. As melhores costumam receber prêmios de qualidade, ou ser recomendadas por outras pessoas, mas também tendem a ser mais careiras. Novamente, a sua escolha poderá ser influenciada pelo valor.
Se você pretende fazer uma tiragem realmente grande, como 5 mil exemplares ou mais, o melhor mesmo é contatar uma gráfica na China, que enviará seus livros por container (que pode demorar uns 3 meses para chegar no Brasil). O preço será muito mais baixo que de qualquer gráfica no resto do mundo. Imprimir na China é particularmente vantajoso para livros com papéis especiais, coloridos, com capa dura, ou aquelas características que o tornariam excessivamente caros em gráficas no Brasil, o problema é apenas encontrar uma gráfica confiável, que cumpra os prazos, além de não ter a quem recorrer caso algo dê errado.
No meu caso, para imprimir o meu guia de viagens, escolhi uma gráfica argentina, em Buenos Aires, que fez um ótimo preço (sem os impostos do país) para uma tiragem de 2 mil exemplares coloridos. O preço unitário do livro ficou abaixo dos 5 reais, que era o valor máximo que eu pretendia pagar.
O acordado era o pagamento de metade do valor no ato da contratação, e a outra metade quando recebêssemos os livros prontos.

Comunicação com a gráfica


Depois de fechar o contrato com a gráfica, você iniciará a parte técnica do processo, ou seja, enviar os arquivos do livro, tanto do miolo quanto da capa. Nesta etapa, seu designer já terá lhe entregado os arquivos quase prontos para a impressão, mas como as especificações de impressão de cada gráfica podem variar, o ideal é pedir-lhe que as enviem antes de entregar-lhes os arquivos.
Na gráfica em que imprimi meus livros, eles me enviaram todas as especificações de como enviar os arquivos de capa e miolo e eu mesmo puder fechar o arquivo para impressão, que podiam ser entregues pessoalmente (em CD) ou via FTP (upload).
O prazo dado para a conclusão do trabalho era de duas semanas. É difícil controlar a ansiedade, ainda mais se este for o primeiro trabalho grande que se realiza e, quando estava para chegar o prazo de entrega, pedi que eles me informassem como andava a impressão. Convidaram-me para assistir a impressão da capa do livro e também do miolo, e foi surpreendente constatar o tanto de material que vai para o lixo por não passar no teste de qualidade.
Tanto para a capa quanto para o miolo, você terá de aprovar as provas, confirmando que o trabalho, as cores, as fontes, as margens e quaisquer outras características do livro estão corretas. Somente depois da aceitação das provas que a impressão de fato do livro começa.

Finalizando o trabalho

Recebemos quase 50 caixas em nosso apartamento e aí vem o dilema de onde alocar tantos livros. Por ser um livro de bolso, sem dúvida ocupava bem menos espaço do que um livro de maiores dimensões.
O resultado final era lindo, mas depois de conferir duas caixas, descobrimos que alguns exemplares haviam vindo defeituosos, com as páginas se soltando. É crucial que você indague quais são os procedimentos da gráfica caso ocorra algum problema. No caso desta nossa gráfica, eles haviam nos informado que, caso viesse com defeito (o que não costumava ocorrer), eles repunham os exemplares com problema ou devolviam o respectivo dinheiro.
No entanto, na medida em que fomos abrindo as caixas, descobrimos mais e mais exemplares defeituosos. Por isto, fomos obrigados a conferir, um a um, todos os dois mil livros e detectamos 80 livros com problemas, ou seja, quase 5% deles. A gráfica efetuou a reposição de alguns, depois deixou de responder aos nossos e-mails; quando os ameaçamos com processo judicial, eles efetuaram a devolução em dinheiro do valor restante. E isto ocorreu numa das gráficas mais premiadas de Buenos Aires!

Vendendo seu livro

A impressão do livro é, de longe, a parte menos problemática deste processo. Os principais problemas começam a surgir quando você passa a vender os livros.
Você provavelmente desejará fazer uma noite de lançamento, convidando amigos e conhecidos para comprar o seu filhote.
Muitos não aparecerão, você pode ter certeza disto, e muitos dos que aparecerão não comprarão seu livro, e dentre aqueles que comprarem, bem poucos o lerão. Seus amigos e parentes só dedicarão um tempinho para ler seus escritos se um dia você estiver famoso; a princípio, só comprarão seu livro para lhe dar um estímulo, mesmo que não acreditem em seu talento.
Numa noite de lançamento, é importante investir um pouco em comes e bebes, pois assim você pelo menos atrairá aqueles que não dão a mínima para literatura. Evite também desanimar se acabar vendendo poucos exemplares desta sua primeira publicação, pois são raros os casos de autores que acertam na mosca logo na primeira vez. Talvez você precise de dois, três, ou uma dúzia de livros até conseguir encontrar verdadeiramente o seu público leitor.
Infelizmente, a maioria dos escritores não tem fôlego para esperar ver seu trabalho render frutos.
A segunda alternativa para vender seus livros é deixando-os em consignação em livrarias. Esta é a prática normal da maioria das livrarias, mesmo com algumas editoras consolidadas. Você deixa o exemplar (ou alguns) e, se eles conseguirem vendê-lo, você ganha 50% do preço de capa, por exemplo, se o livro é vendido a 30 reais na livraria, eles lhe repassam 15. Ao abater o preço de custo dos livros, digamos 4 reais por exemplar, seu lucro será de 11 reais. Não é nada excepcional, mas podia ser pior. Um autor publicado por uma editora comercial ganha na faixa de 10% do preço de capa, ou seja, o mesmo livro de 30 reais lhe renderia apenas 3 reais.
A terceira alternativa é vendê-lo pela internet. Se você já tem um blog de sucesso, ou uma vasta rede de contatos pela internet, pode ser um bom canal de vendas. Enviar pelo correio pode custar a partir de uns 4 reais (impressos – consultar as especificações dos Correios) e, geralmente, não há muitos problemas. Talvez você tenha de amargar um ou outro exemplar extraviado e arcar com o prejuízo, seja devolvendo o dinheiro do comprador, seja enviando um livro de reposição, mas, no geral, o lucro será muito maior, pois é o comprador quem paga pelo frete e o valor total do livro, excluindo o preço de custo dele, será seu. Obviamente que não dá tanto status quanto tê-lo nas prateleiras de uma livraria, mas é uma maneira de comercializar diretamente com seu leitor, sem intermediários (e seus respectivos custos).
Uma quarta alternativa é vendê-lo pessoalmente, através de palestras, cursos, oficinas de escrita, oferecendo nas ruas, ou seja, no corpo-a-corpo. No entanto, nem todo o mundo tem vocação para vendedor, então pode ser que esta ideia não lhe agrade.
A quantidade de exemplares vendidos corresponderá ao grau de dedicação que você teve na preparação do livro, a qualidade da impressão, a quantidade de leitores que você já possui e ao grau de visibilidade que o livro terá.
Se, um dia, você conseguir esgotar toda uma tiragem, fica a seu critério julgar se compensa fazer uma reimpressão ou se está na hora de investir num outro trabalho. Alguns autores conseguem chamar atenção o bastante para conseguirem um contrato com uma editora comercial, outros se saem tão bem nisto que vivem exclusivamente com a vendagem de suas publicações independentes.
Apesar de a publicação por uma editora ser o sonho de muitos escritores, ser um autor independente possui vantagens e uma liberdade incomparáveis, mas também implica em seu preocupar e lidar com problemas que, numa editora, seriam da alçada de sua equipe editorial.

Registrar ou não o livro na Biblioteca Nacional?


A lei de direitos autorais já protege o seu livro a partir do momento em que está escrito, mesmo sem jamais ter sido publicado. Em tese, não há necessidade alguma de registrá-lo na Biblioteca Nacional, ainda mais se você pretende vendê-lo diretamente aos compradores.
No entanto, para vendê-lo em livrarias, seu livro provavelmente precisará ter um ISBN (Internacional Standart Book Number) e código de barras. Para isto, você precisará fazer o cadastramento de Pessoa Física na Biblioteca Nacional, preferencialmente antes do livro ser impresso, para obter o número, o código de barras e a ficha catalográfica.
No site da Biblioteca Nacional há todas as instruções para a solicitação do ISBN.

Check-list da autopublicação

1 – escrever um livro
2 – contratar um revisor
3 – contratar um designer e/ou um capista
4 – fazer orçamentos em gráficas
    a – comparar preços, qualidade e características da impressão
    b – negociar o orçamento
    c – assinar o contrato
    d – fechar o arquivo para a impressão
    e – verificar as provas
5 – receber as caixas de livro e encontrar um lugar para colocá-las
6 – checar alguns (ou todos) exemplares para ver se há algum defeito
7 – iniciar a venda

Tuesday, April 20, 2010

Beckett e a desconstrução do humano

O século XX representou a quebra de todos os paradigmas, todos os ídolos, todas as tradições.
Apesar de este processo de transformações estar presente de maneira bastante nítida durante toda a História da Humanidade, em nenhum outro momento a ruptura se tornou tão evidente e teve por objetivo a própria ruptura.
Marx, Nietzsche e Darwin foram os primeiros a vislumbrarem este novo mundo, ainda no século anterior. Semearam as bases para a modernidade e instauraram, ou detectaram, a ânsia por mudanças.
Logo no início do século XX, o cenário social, intelectual e cultural estava atribulado. Freud apresentava uma nova visão sobre as patologias mentais e, por extensão, sobre o próprio ser humano; na Rússia, Lênin conduzia a maior e mais decisiva revolução política da Europa; enquanto em Paris, pintores, escritores, músicos e escultores abriam as portas para a modernidade, abandonando a linguagem academicista e estabelecendo novas formas de expressão — Stravinsky, Picasso, Proust, Joyce, Rodin, Kandinsky, Miró, entre outros, estiveram na vanguarda destes novos tempos.

O mentor e o discípulo
“Ulisses”, considerado como um dos mais importantes romances do século XX, foi publicado em 1922. Até então, James Joyce era conhecido apenas em pequenos círculos literários, mas a publicação deste romance propagaria seu nome pela Europa e o incluiria na galeria dos grandes escritores do mundo.
Graças a “Ulisses”, James Joyce chegou a ser cogitado para o Prêmio Nobel de Literatura, o que, contudo, jamais ocorreria. Nesta obra, Joyce inaugurava, quase simultaneamente a alguns poucos autores, uma nova técnica de escrita — o fluxo de consciência. Do mundo exterior, o foco da escrita passou ao complexo e fugaz mundo interior.
Alguns anos depois, James Joyce e Samuel Beckett se conheceram. Ambos eram irlandeses, ambos eram auto-exilados, ambos estavam imbuídos da missão literária de desvendar as profundezas humanas.
Joyce buscava a plenitude, recriar e englobar o mundo inteiro em sua escrita. “Ulisses” é um desfile pelo universo da Literatura, onde várias formas, vários estilos, vários pontos de vista, vários personagens são apresentados. Era um prenúncio para o maior experimento literário de Joyce, “Finnegans Wake”, uma obra sem começo nem fim, que reunia algumas dezenas de idiomas para construir uma nova linguagem, híbrida e polissêmica. Beckett foi um dos colaboradores de Joyce durante a pesquisa para “Finnegans Wake” e, diante do processo criativo e da genialidade de Joyce, Beckett percebeu que esta era uma trilha que ele jamais poderia trilhar.
Se Joyce ansiava pela totalidade, Beckett teria de se contentar com o nada.

A Trilogia

Beckett inicia uma trilogia romanesca em 1951. O primeiro dos livros é “Molloy”, a história de um jovem homônimo que vaga pelas ruas de uma cidade, primeiro com sua bicicleta, depois se arrastando. Na segunda parte, o detetive Moran e seu filho são incumbidos de encontrar Molloy e, de uma maneira um tanto mais coerentes, os eventos ocorridos a Molloy se repetem com Moran. Críticos sugerem que o protagonista da obra é um esquizofrênico, Moran e Molloy seriam personalidades de uma única pessoa.
Desta trilogia, este é o único romance que ainda traz resíduos de enredo e coerência. Beckett já demonstra o antagonismo temático a Joyce, apesar de apresentar-se sob a mesma vestimenta técnica, o fluxo de consciência e o mergulho na essência do ser humano. No entanto, para Beckett, a essência é o vazio, o nada, o ser rastejante e sem sentido que somos, o extremo oposto do homem total e universal de Joyce.
No segundo romance, “Malone Morre”, Beckett narra os últimos dias de Malone em seu leito de morte. O romance se limita a descrever as impressões e algumas rememorações fragmentárias do narrador-protagonista. Alguns temas de “Molloy” ressurgem, como o ser rastejante, a falta de memória, as recordações equivocadas ou incompletas, a falta de vínculos entre as pessoas, o nada, nossa impotência diante da vida, nossa servitude.
No entanto, apenas em “O Inominável” que Beckett parece concretizar toda sua cosmovisão da escrita, um romance sem protagonista, sem enredo, sem coerência, uma nada verbal que se prolonga por centenas de páginas. Um verdadeiro monumento ao esvaziamento do sentido, a obra-prima da desconstrução do humano e da identidade.
Toda a trilogia foi escrita diretamente em francês, ao invés da língua nativa de Beckett, o inglês. O autor justifica esta escolha afirmando que em francês era mais fácil para ele escrever sem estilo. Novamente, o fantasma do mentor Joyce pairava sobre Beckett, onde aquele era pleno e perfeito, este tinha de ser falho e incompleto, sem estilo, menor.

Esperando Godot

Apesar do prosador estupendo, foi no teatro que a carreira de Samuel Beckett se consolidou. Aliás, foi logo numa de suas primeiras peças, “Esperando Godot”, que ele se consagraria no cenário dramatúrgico.
Uma crítica de teatro afirmou que Beckett “havia obtido uma impossibilidade teórica — uma peça na qual nada ocorre, e que mesmo assim mantém a plateia grudada no assento. Mais do que isto, sendo o segundo ato uma sutil repetição do primeiro, ele escreveu uma peça na qual nada ocorre duas vezes”, pois todo o enredo se resume a dois personagens, Vladimir e Estragon, aguardando Godot, que não aparece.
Afirmar que nada acontece é exagerado, pois certos eventos transcorrem durante esta espera, no entanto, tanto no primeiro ato quanto no segundo ato, que é uma espécie de paródia do primeiro, o que insufla os protagonistas é a angústia do evento que há de se suceder, mas que não se realiza.
As interpretações do sentido da peça são múltiplas, alguns sugerem que Godot é um símbolo de Deus (God), mas Beckett logo rejeitou esta hipótese — “se eu quisesse ter dito Deus, teria dito Deus e não Godot”.
No fundo, “Esperando Godot” é apenas uma reasserção da descoberta feita por Beckett na trilogia romanesca: não somos nada a não ser a eterna projeção sem sentido de nós mesmos para o fim. Dia após dia, os personagens de Beckett, incrivelmente semelhantes à maioria de nós, movem-se (ou se arrastam) para o fim, sem lógica, sem razão, sem compreensão, aprisionados à inexorável marcha do tempo.

Conclusão
Beckett foi um herdeiro literário direto de Joyce. Estilisticamente, fracassou onde Joyce prevaleceu, porém, Beckett venceu onde Joyce foi derrotado. Em 1961, Beckett dividiu o Prix Formentor com Jorge Luis Borges, premiação que projetou internacionalmente a carreira de ambos. Em 1969, Beckett se tornou o terceiro irlandês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, depois de Yeats e Bernard Shaw.
Todavia, assim como Joyce, Beckett terminou por se tornar um daqueles autores idolatrados, admirados, temidos, imitados, mas pouco lidos.
Numa carta, Frank, irmão de Samuel Beckett, indagou-lhe: “Por que não consegues escrever do jeito que as pessoas gostariam?”.
Talvez uma resposta que Beckett poderia ter dado é que desvendar o ser humano não é a tarefa das mais agradáveis de se ver, tampouco pode ser expressa de maneira simplória.
O anti-homem da escrita de Beckett não poderia estar mais próximo de nós, pois está em nosso interior.

Artigo publicado originalmente na Revista SAMIZDAT

Tuesday, January 19, 2010

Dez anos de ofício literário

*
“Por detrás de um sucesso instantâneo, há dez anos de trabalho duro”, este é um ditado corrente em Hollywood.
Enquanto que, por um lado, serve de aviso aos novatos para que estudem, aperfeiçoem-se e batalhem muito até chegarem ao estrelato, por outro lado também é a constatação que o sucesso não vem de graça, é fruto de muitos sacrifícios e trabalho diário. Não existe vitória sem luta.
Neste mês de janeiro, completo dez anos de carreira literária, desde o momento em que conscientemente decidi que, um dia, eu me tornaria um escritor.
No calor da batalha, não há tempo para pararmos e refletirmos sobre as derrotas e conquistas, pequenas ou grandes; todos os nossos esforços destinam-se ao próximo desafio, ao próximo combate a ser encarado.
No entanto, dez anos depois, sinto que posso compartilhar um pouco do que aprendi neste percurso e, mais do que isto, que eu também necessito desta ponderação para reforçar uma vez mais minha escolha, pois ser escritor no Brasil não é uma tarefa fácil, não é para quem tem dúvidas, não é para fracos.

Escrever? Por quê?
A escrita, como ofício, entrou acidentalmente em minha vida.
Da infância até a adolescência, quis ser desenhista, depois, dediquei-me exaustivamente ao piano, mas, ao me mudar da casa da minha mãe, fiquei vários meses sem praticar, sem ter como pagar o transporte do piano.
Foi na escrita que encontrei a minha forma de expressão, quando nada mais me restava. Assim como ocorre com várias outras pessoas, pensei que escrever era simples — bastava uma folha de papel e uma caneta.
Eu tinha apenas dezenove anos e acreditava, à época, que tinha muito para contar. Como muitos, escrevi minha autobiografia. Mal escrita, desinteressante, mal estruturada, mas que serviu como catarse. Acredito que pude exorcizar muitos dos meus medos, dos meus fantasmas, dos meus entraves subconscientes naquele livro que jamais verá a luz do sol.
Mas o prazer de ver um livro pronto, de ler minhas palavras, de ver meus pensamentos exteriorizados e perpetuados numa obra me motivou a escrever outros.
Prazer... Escrevo por prazer.

Contos e romances
Os primeiros anos foram os mais difíceis. Todo o escritor iniciante se depara com os mesmos questionamentos: o que escrevo tem valor? É bom? Os leitores gostarão?
E disto deriva o desespero para fazer seus textos chegarem às mãos das outras pessoas, de receber comentários, de confirmar suas expectativas de que ali está o futuro Prêmio Nobel. Sim, todos os escritores almejam um dia receber o Nobel, mesmo que seja para recusá-lo, como fez Sartre!
Mas os outros não estão interessados no que escrevemos. Poucos podem dedicar seus preciosos minutos lendo as bobagens dum autor desconhecido. Os poucos que se prestam a este papel nada acrescentam — pais, avós, irmãos ou amigos raramente serão sinceros, raramente lhe dirão na cara que o seu livro é um lixo.
Produzi vários contos e dois romances nestes primeiros anos. Acreditava que, um dia, revolucionaria a Literatura, mas, relendo tais textos hoje, percebo como eram crus e ingênuos. Estava engatinhando ainda, precisando de orientação, ainda atrelado aos autores que eu lia ou admirava.
Mas esta constatação leva anos para ocorrer; naquele tempo, eu ainda me indignava quando, ao ver o resultado de um concurso literário, descobria que meu nome não estava entre os primeiros colocados, e me revoltava ainda mais ao ler os contos ganhadores e ter a certeza de que os meus eram muito melhores. Será que todos eram cegos? Ou será que minha genialidade os cegava?
Nada disto, eu apenas estava no processo de formação, de desenvolvimento, de aprendizado.
Mesmo assim, o meu primeiro romance bateu na trave da publicação por duas vezes. Na primeira, uma aluna do curso de editoração da USP procurava um autor para publicação. Tratava-se do projeto de conclusão de curso dela e ela precisava editar uma obra. Enviei-lhe o manuscrito de “O Canto do Peregrino” e, no dia seguinte, recebi a resposta: ela queria publicar o meu primeiro romance!
Fui até a USP, encontrei-me com ela e com o diretor da Editora Com-Arte e assinei a autorização para a publicação. No entanto, a aluna se formou, os anos se passaram, e jamais tive notícia da publicação. Logo depois, Chloris Casagrande Justen, a escritora — acadêmica da Academia Paranaense de Letras — que havia prefaciado o romance, tentou encaixá-lo numa série de publicações organizada pela Câmara de Deputados de Curitiba. Entreguei o original no escritório de editoração, mostraram-me o boneco das publicações, mas nada, até hoje parece que este projeto não saiu do papel.
Neste mesmo período, recebi minhas primeiras cartas de recusa para o segundo romance, “O Rei dos Judeus”, que chegavam com tamanha rapidez que eu só podia acreditar que ninguém havia sequer folheado o manuscrito.
Todavia, uma das editoras demorou tanto tempo para responder que cheguei a acreditar que, daquela vez, eu seria publicado. Tremia todas as vezes que abria a caixinha do correio. Após onze meses de espera, recebi a resposta: o livro havia sido recusado.
Esta sequência de negações, a sensação de patinar no lugar, me angustiava. Será que eu tinha talento? Deveria continuar?
Já estava investindo nisto há uns quatro anos e apenas recusas, só fracasso, só batendo a cara na porta...

Internet
Em 2004, publicar na internet ainda era arriscado. Todos falavam em cópia, plágio e outras violações de direitos autorais.
Só é vítima de plágio ou cópia aquele autor que tem algo a perder.
Eu não tinha nada perder, não tinha leitores, mas tinha na gaveta uma porção de textos. Por que não lançá-los na rede e pagar para ver? Por que não ingressar neste mundo e experimentar a escrita num blog?
Por que não?
Criei um blog, depois outro, e, num intervalo de meses, já tinha meia dúzia deles. E, pela primeira vez, também tinha leitores.
Que sensação extraordinária esta de chegar em casa, acessar seu blog e encontrar nele alguns comentários. Elogios ou xingamentos, tanto fazia, o importante era saber que havia alguém lendo o que eu escrevia, e que se comovesse tanto, positiva ou negativamente, a ponto de ter de me escrever de volta. O mais incrível era pensar que, naquela imensidão da internet, alguém havia encontrado meus textos e gasto alguns instantes para lê-los. Entre milhões de sites, blogs e textos, alguém havia escolhido os meus!
Nesta época, escrevi um romance diretamente num blog, “O Covil dos Inocentes”, que devia ter uns quinze leitores fiéis e, depois, tornou-se um livro. Quase todos os meus contos, depois de revisados, também iam ao ar.
Eu ainda não era conhecido, mas saciava o meu desejo por ser lido.

Oficina da E-TL e Revista SAMIZDAT
Eu havia constatado, desde o princípio, que o importante, na escrita, era estudar sempre. Além de ler livros sobre a escrita, estudar inclui ler obras de outros autores — reconhecidos ou não — e, principalmente, praticar.
A escrita, como qualquer outro ofício artístico, exige a prática quase diária. Quanto mais tempo dedicamos ao ofício, maior é o domínio sobre ele.
Com este intuito, foi criada a comunidade “Escritores – Teoria Literária” na internet, para debates sobre a escrita, para o aperfeiçoamento mútuo dos escritores e, posteriormente, a “Oficina da E-TL”, uma oficina literária virtual para produção e leitura de textos.
Acredito que tenha sido esta última a grande responsável pelo escritor que hoje sou, que me fez perceber quais eram meus erros e vícios de escrita, e na qual pude receber, pela primeira vez, pareceres sinceros sobre meus textos.
O valor desde tipo de leitura para um escritor é inestimável. Ouvir elogios é ótimo, motiva-nos a continuar, mas a crítica é essencial. É apenas quando alguém toca nossas feridas expostas que descobrimos como remediá-las.
Foi com vários escritores desta oficina que criamos a “Revista SAMIZDAT”, uma revista digital que hoje considero como o projeto literário que mais me dá motivos de orgulho. São dois anos de publicação mensal ininterrupta, com textos de altíssima qualidade, mas que voa bem mais baixo do que poderia.

Mãos-de-Vaca
Apesar dos vários romances e da quase centena de contos escritos, o meu projeto que realmente obteve algum reconhecimento nada tem a ver com Literatura.
“Nova York para Mãos-de-Vaca” foi um dos inúmeros blogs que criei, junto com minha esposa, trazendo dicas baratas de Nova York. O número de leitores cresceu exponencialmente e, em menos de um ano, estávamos dando a primeira entrevista para a Globo Internacional. Em três anos de publicação, este trabalho foi assunto para entrevistas e reportagens na Revista TAM, no portal Terra, no jornal “O Globo”, no jornal “Estado de S. Paulo”, na Tribuna de Santos, no SBT, em várias outras publicações e sites nacionais e internacionais. Atualmente, o “Jornal da Record” está preparando uma matéria sobre nós.
Do mesmo modo que minha carreira na escrita havia começado acidentalmente, também foi por acidente que concebi e realizei meu primeiro projeto bem-sucedido.
Aliás, foi este trabalho que gerou meus primeiros trocados com a escrita, após muito tempo gastando dinheiro com papel, correio, cartuchos de impressora, ou inscrições para concursos. Inicialmente, foram apenas poucos centavos por mês, mas, em breve, graças ao “Nova York para Mãos-de-Vaca”, poderei realizar o objetivo de viver exclusivamente da escrita.

Considerações finais
Há mudanças drásticas entre o que escrevi nos primeiros anos e o que escrevo hoje. Acredito que hoje escrevo mais e melhor. E também é mais fácil organizar meu tempo e concluir um livro.
Aos poucos, descobrimos alguns macetes, alguns atalhos, o que funciona e o que não funciona tão bem. E não é tão difícil prevermos se uma ideia dará um bom livro, ou se encalhará e acabará no lixão.
Ainda erramos, é óbvio; ainda nos dedicamos a projetos que fracassarão, mas a experiência nos ajuda a compreender melhor onde falhamos, e lidar mais humildemente com os sucessos.
A carreira literária não é como o lançamento de um foguete, que num minuto está no solo e, logo em seguida, deixando a atmosfera rumo ao espaço. A carreira literária é uma longa caminhada, um passo após o outro, sob sol escaldante, cheio de pedras e buracos no trajeto.
Não há metáfora mais batida, tampouco mais apropriada.
Neste período, percebo que obtive algumas conquistas, mas muito ainda há para ser feito. Diretamente, desde os meus blogs ou sites, meus textos foram acessados por mais 600 mil leitores, indiretamente, imagino que por mais de um ou dois milhões. Não sou um “sucesso instantâneo”, tal qual no ditado hollywoodiano, mas este ano de 2010 promete!

Coisas que aprendi sobre a escrita nestes 10 anos
1 – Leia, estude e escreva sempre. Ninguém aprende a escrever melhor lendo; aprende-se a escrever melhor escrevendo. Mas leitura e escrita são indissociáveis.
2 – Poucos autores vivem exclusivamente com o lucro de sua escrita, e mais raros são os que enriquecem com Literatura; portanto, não se martirize por jamais ter ganhado um centavo com seus textos, você não é o único.
3 – Jamais subestime os leitores. Eles sabem muito bem o que gostam e o que querem ler. Comumente, o autor é o único culpado pelo próprio fracasso.
4 – Jamais menospreze o poder da propaganda, seja na mídia ou no boca-a-boca. Ninguém lerá o que você escreve se não souber onde encontrar seus textos.
5 – A era de domínio das editoras passou. Se nenhuma quer publicá-lo, disponibilize suas obras na internet, ou imprima seus textos e deixe-os em bibliotecas, ou cole-os em postes. Se você quiser realmente ser lido, deixe de ser invisível.
6 – O conceito de sucesso é relativo: alguns querem ficar ricos, famosos, admirados, realizados, ou qualquer outra definição. Descubra o que significa ser bem-sucedido para você e persiga esta meta. Nada garante que você conseguirá, mas é muito mais fácil ter um objetivo do que ficar vagando a esmo.
7 – Todos os escritores gostam de receber elogios, não existe motivação melhor. No entanto, aprenda a conviver com as críticas. Muitos o criticarão por inveja, simplesmente para destruí-los, mas outros apontarão seus erros na expectativa que você os corrija. Saiba discernir entre a crítica maldosa e a benéfica. É melhor ter por perto alguém para corrigi-lo, do que centenas de aduladores que o incentivem a continuar errando.
8 – Escreva corretamente e com clareza. Utilizar sua língua de maneira correta é muito mais fácil do que parece e, acredite em mim, seus leitores perceberão e apreciarão um texto bem escrito. A língua é sua matéria-prima, por isto, é fundamental conhecê-la e respeitá-la.
9 – Assim que você concluir uma obra, seja um conto ou um romance, deixe-o descansar por uns dias ou semanas. Quando você o ler novamente, encontrará erros e problemas que nem imaginava. Nada é tão bom que não possa melhorar. Contudo, saiba quando pôr o ponto-final e avançar para o próximo projeto.
10 – Quase todo o mundo quer, ou já quis uma vez na vida, ser escritor. Nem todos conseguirão, nem todos têm o talento necessário. Assim como nem todos podem ser astronautas, engenheiros ou médicos. Alguns conseguirão; a maioria não. Mas isto é algo que só descobriremos tentando...

Artigo publicado, originalmente, na Revista SAMIZDAT.

Monday, January 18, 2010

Descrença

*
*
— Como vocês podem acreditar em Deus? — o homem gritou, de sobre os escombros da igreja, para a multidão que o cercava — Olhem ao seu redor! Vejam a destruição, os mortos, a fome, irmão voltando-se contra irmão, olhem e vejam! Quantas vezes isto ainda ocorrerá e as pessoas erguerão as mãos para o céu pedindo auxílio divino? Deus não existe! Ele não existe! Esta devastação é uma prova. Todo este sofrimento é prova. Os milhares de mortos são, cada um deles, provas!

Tais palavras insuflaram o povo ao desespero, batiam contra o peito, esmurravam-se uns aos outros, ouviu-se tiros ao longe e correria. Se Deus não existe, então tudo é permitido, disse Dostoievsky, e foi a mesma conclusão que aquelas pessoas chegaram: então, tudo era permitido.

O homem sorriu e caminhou pelas ruas soterradas, embrenhou-se em becos vazios e escuros, saltou cadáveres e ignorou aqueles que lhe pediam comida ou água.

No entanto, alguém o agarrou pelo colarinho e o jogou sobre uns entulhos. Chutou-lhe a cara e depois escarrou sobre ele.

— Você? — o homem disse, limpando o sangue que escorria do nariz e boca.
— Mentiroso! Como ousa mentir deste jeito para o povo?
— É o meu papel. Este é o meu trabalho.
O agressor sentou-se sobre um monte de concreto, cobriu o rosto com as mãos e chorou.

— Como agradar as pessoas? Você cria algo complexo, trabalhoso, que lhe toma trilhões de milênios, e os outros acham que você tem a obrigação diária de gerenciar esta criação... Você dá às pessoas o livre-arbítrio, que lhes permitem discernir entre o bem e o mal, que lhes dá a escolha entre ajudar ou ferir seus próximos e, mesmo assim, todos esperam que você faça algo, todos põem sobre você a responsabilidade. E, no final das contas, ainda dizem que você não existe? Será que acham que não tenho mais nada para fazer?

O Diabo limpou o pó da roupa, enxugou o sangue num lenço e, gargalhando, foi embora.

Em meio às ruínas do mundo que desabava, sozinho ficou Deus.

***

Insipirado no site Cross Genres, o Ficção Científica e afins propôs que os escritores escrevessem um conto sobre a tragédia no Haiti, e divulgassem os dados para doações às vítimas do terremoto.

Caro leitor: participe divulgando a iniciativa , lendo os contos e fazendo doações.

Médicos Sem Fronteirasdoações no site

Nome: Embaixada da República do Haiti
Banco: Banco do Brasil
Agência: 1606-3
CC: 91000-7
CNPJ: 04170237/0001-71

Nome: Comitê Internacional da Cruz Vermelha
Banco: HSBC
Agência: 1276CC: 14526-84
CNPJ: 04359688/0001-51


Nome: Movimento Viva Rio
Banco: Banco do Brasil
Agência: 1769-8
CC: 5113-6
CNPJ: 00343941/0001-28

A ONG ambém está recebendo doações de medicamentos, alimentos enlatados, materiais de primeiros socorros e pastilhas de cloro para purificação de água para enviar a Porto Príncipe. As doações devem ser entregues na sede do Viva Rio, na Rua do Russel, 76, no bairro da Glória, no Rio, das 9h às 18h. A ONG está organizando um esquema de plantão para receber as doações no final de semana.

Sunday, January 17, 2010

O Personagem

O personagem aparece por entre brumas no fundo da memória. É uma mescla de muitas pessoas, algumas que conheci, outras que vi em algum filme ou em livro, ou de mesclas de mesclas de várias outras pessoas das quais já me esqueci.
Não tem rosto, raras vezes sei quais são suas feições. Não me importa, deixe que o leitor preencha esta lacuna.

Ele permanece em silêncio, enquanto eu o fito demoradamente. Pondero sobre ele naqueles instantes inquietos antes de adormecer, ou dentro do metrô quando nada nos resta a fazer senão meditar, ou caminhando pelas ruas ao meu destino.

Às vezes, ele surge diante de mim em momentos inusitados, ao dispersar-me da leitura de um trecho enfadonho de Soljenítsin ou Beckett, durante o banho ensaboando o corpo, ou durante os intervalos comerciais da novela. Mas eu permito tais intromissões com a mesma tolerância que recebemos a visita inesperada de um caro amigo. Deixo que ele apareça e sente-se ao meu lado. Aguardo que ele me diga a que veio, mas ele insiste no silêncio.
Ele não está pronto, uma criatura incompleta.

Concebo cenas, planejo enredos, tento prever como ele se comportará. O que ele fará nesta situação? Como agirá? Apaixonar-se-á pela mocinha? Derrotará seu inimigo?
Mas dele só recebo um sorriso tímido. Também não sabe a resposta. Tem tantas dúvidas quanto eu, vazio de vontade e motivação, um títere sem vida dependurado cabisbaixo em fios. Aguarda meus dedos para manipulá-lo, insuflá-lo de ânimo, pô-lo em movimento.

Então chega o dia que tão ansiosos aguardávamos. Sento-me ao computador e cuido demoradamente a página em branco.
A página em branco, a grande adversária do escritor.
Sardonicamente, ela me desafia, zomba de mim e do personagem.
— Jamais conseguirá! — ela brada e, vez ou outra, ela me convence.

Escrevo qualquer frase, qualquer uma, mesmo que tenha de alterá-la, apagá-la, mesmo que seja ridícula, vazia, um clichê. Pois uma frase qualquer basta para calar, para macular a inquietante brancura da página, para pôr em marcha tudo aquilo que fervilha dentro de mim, para libertar a avalancha que, se não despencar montanha abaixo, arrancando árvores e sorretando tudo, poderá se voltar contra mim, lançando dúvidas e angústias, recordando-me dos dias em que eu ainda não sabia o que pretendia fazer da vida, nem se as minhas palavras tinham algum valor, se mereciam ser lidas por alguém.

A decisão é tomada: luto contra o mundo ou contra mim mesmo; empreender esta guerra em duas frentes não é possível — este havia sido o equívoco e prepotência de Napoleão e Hitler, superestimar suas forças.
A decisão é tomada: deflagro o turbilhão e me liberto. Uma frase somente basta, e tudo o mais decorre por si.

E os dias e meses planejando, concebendo, refletindo são postos abaixo. Assim que o primeiro esforço é realizado, o personagem mostra suas garras e assume o controle. A criatura se volta contra o criador. A marionete não era uma marionete porcaria nenhuma; sua inação era fingimento, apenas um disfarce para me enganar, atrair-me para sua rede e capturar-me.
Daquele instante até o fim, o personagem, o pobre “títere”, ata-me em fios e controla meus movimentos, enreda-me com a própria trama que eu pretendia dominar.

Dizem que, quando Robert E. Howard criou o personagem Conan, o autor sentia que o bárbaro cimério ficava postado ao seu lado, machado em punho, obrigando-o a escrever, aterrorizando-o caso fracassasse.

Creio que todo escritor encontra-se, pelo menos uma vez, nesta posição de prostração. Quanto mais isto ocorrer, melhor é. Quanto menos do escritor encontrarmos nas palavras, mais o personagem se engrandece, mais autêntico se torna.

Os maus escritores escrevem pela glória pessoal. Os bons escritores escrevem para que o personagem se torne completo, cumpra sua missão e diga plenamente a sua mensagem. A tarefa do autor é desaparecer por detrás do personagem que se forma.

Mas esta submissão nem sempre é pacífica. Somos falhos, meros humanos, cheios de orgulho e ambições. Pouco nos agrada sermos pisoteados por nossa cria. Todos os dias, a sociedade, os governos, os patrões, os poderosos nos oprimem, arremessam-se à lama da insignificância e subserviência. Acreditamos que, naqueles breves instantes de criação literária, de elaboração artística, nós seremos os senhores, a suprema autoridade.
— Este é o meu mundo! Minha criação! — berramos, debatendo-nos cheios de brio. E é neste embate que terminamos por destruir o que tanto almejamos. Pondo rédeas em nossos personagens, quase sempre os conduzimos para o precipício.

É impossível criar e, ao mesmo tempo, ter controle absoluto. Criar é permitir que o imprevisível se manifeste.
Aos poucos, o personagem começa a se despedir. Se conviveu conosco por horas, dias ou anos, tanto faz, pois, concluída a obra, ele viverá para sempre. Enquanto existir um leitor no mundo, o personagem estará pronto para ressurgir e contar sua história.
Retornamos, enfim, ao vazio, ao mundo cotidiano, à louça suja para lavar na pia, ao filme mais tarde na TV, ao trânsito congestionado, ao filho que não pára de chorar.
O personagem retorna a seu repouso.
O escritor tem outras páginas em branco para enfrentar.

Publicado originalmente na Revista SAMIZDAT
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