Friday, July 26, 2013

Quem são seus personagens?

(Quasimodo, personagem de "O Corcunda de Notre-Dame" de Vitor Hugo)

Não minta. Você também se inspira em pessoas reais para compôr seus personagens. Eu sei disto. É o que todos nós escritores fazemos.

Os personagens não surgem do nada. Nenhum personagem é puramente inventado, sem nenhuma relação com pessoas com as quais você convive ou conviveu, com aquelas que viu na TV ou sobre as quais você leu.

Autobiografia/memórias

Eu sou da teoria que toda ficção é, em algum ponto, autobiográfica.

Se não for uma autobiografia de fato, relatando exatamente o que e como ocorreu - entenda-se este "exatamente" de acordo com a percepção do autor, pois nem sempre a nossa percepção dos fatos corresponde aos fatos como eles se deram -, ao menos é uma autobiografia num sentido mais amplo.

Toda obra literária revela facetas de seus autores, sejam suas inquietações, medos, desejos, traumas, alegrias, mas principalmente seus interesses enquanto pessoa. Alguém que não tenha o mínimo interesse em Ficção Científica provavelmente não se arriscará a escrever um livro do gênero.
Mesmo alguém que resolva escrever uma narrativa na qual não acredita nem se interessa somente pela possibilidade de enriquecer já está revelando uma característica sua: este apego pelo dinheiro.

Nesta lógica, os personagens de uma obra literária também pertencem a este universo autobiográfico, de pessoas que passaram por nossas vidas e nos afetaram, positiva ou negativamente.

Por outro lado, existem livros que são claramente autobiográficos, no sentido mais específico.
Alguns exemplos são "Paris é uma Festa" de Ernest Hemmingway, relatando os anos de juventude dele em Paris e seu contato com a geração perdida; temos também "Memórias, sonhos e reflexão" de C. G. Jung, os diários de Anaïs Nin, "Fala, Memória" de Vladimir Nabokov, e "Infância" e "Memórias do Cárcere" de Graciliano Ramos.

O risco de escrever autobiografias ou memórias é que, por mais que estas sejam as suas recordações, geralmente elas compromentem outras pessoas, e quase ninguém gosta de se ver refletido no espelho das rememorações alheias. Não é à toa que há tantos processos de difamação envolvendo a publicação de obras (auto)biográficas.

Roman à clef

Uma ótima alternativa para fugir dos problemas envolvendo biografias, autobiografias e memórias, é o Roman à clef, o que nada mais significa do que a ficcionalização de fatos reais através de personagens supostamente ficcionais.

Em muitos casos, um romance com estas características é uma autobiografia/memória alterando os nomes dos personagens e afirmando: "esta é uma obra de ficção".
Digamos que você namorou uma tal Maria da Silva em sua infância e perdeu a virgindade com ela. Esta Maria da Silva hoje é casada com outra pessoa, mãe de três filhos, advogada e tem uma vida própria que não lhe diz respeito (talvez até tenha se casado com este outro sujeito jurando de pés juntos que ainda era "pura").

Então, na hora de escrever seu livro, para evitar quaisquer complicações futuras, que a Maria da Silva acabe dando com seu romance numa livraria qualquer e se emputeça com os detalhes íntimos revelados, você altera o nome do personagem para "Marieta da Costa".
Pronto, todos seus problemas foram resolvidos!

Muitíssimos grandes autores trabalharam, às vezes exclusivamente, com romans à clef. Poderia citar incontáveis escritores, mas alguns bastante simbólicos são James Joyce, Charles Bukowski, Marcel Proust, Henry Miller, George Orwell, Thomas Mann, Roberto Bolaño, Jack Kerouac, entre vários outros.

Outra vantagem deste tipo de obra é que, pelo fato de ser descaradamente ficção, você não precisa ater-se fielmente à realidade. Por mais que seus personagens sejam inspirados em pessoas reais, você pode alterá-las um pouco para se encaixarem na proposta de sua história. Afinal de contas, é ficção, e em ficção pode tudo.

Ficção, ma non tanto

Por fim, entramos no terreno puramente ficcional, quando as situações e personagens são criados, vivem e existem somente no interior da prosa ficcional.

Como afirmar categoricamente que o Sméagol de "O Senhor dos Anéis" foi inspirado numa criatura/pessoa real?
Ou que existiu de fato um Corcunda de Notre-Dame ou um Jean Valjean?
Será que se caminhássemos pelas ruas de Londres daríamos de cara com o Harry Potter em alguma esquina?

Todavia, por mais inventivos e originais que os personagens pareçam ser, todos eles fatalmente possuem alguma relação com pessoas reais. O autor pode ter se inspirado em alguém particular ou reunido as características de várias pessoas, mas de algum lugar aqueles traços surgiram.
Citando Lavoisier: "na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma."

E o mesmo vale para a Literatura, tudo se transforma, tudo vira matéria e inspiração para um autor, seja a própria vida dele, a da esposa, dos pais, dos vizinhos, ou de um mendigo pelo qual ele passou na saída do metrô. Tudo é assimilado e retorna como criação ficcional.

Em suas essências, os personagens são pessoas reais, e é justamente por isto que nos identificamos com eles, pois trazem atributos, qualidades e defeitos que podem ser encontrados nas pessoas do nosso dia a dia; eles mantém um contato com a nossa vida real, trazem-nos para o mundo que nos circunda e, muitas vezes, ajudam-nos a reinterpretar este mundo.

Personagens puramente ficcionais são incontáveis, mas, se fôssemos investigá-los um a um, estou certo que encontraríamos a raiz de onde eles brotaram, seja na história particular do autor, seja em suas influências literárias, cinematográficas, musicais, mitológicas ou de qualquer outra fonte que ele tenha bebido.

Num estrato mais fundamental, os nossos personagens partem da nossa compreensão da realidade. Eles são moldados a partir de nossas vivências e interesses e, por mais diferentes que sejam de nós, ainda assim são uma parte indistinguível de quem somos.

Revelamo-nos através de nossas criaturas.
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