Friday, December 19, 2008

Aqualung - e-book gratuito (mojobook)

Acredito que a maioria de vocês que freqüenta o "Blog do Escritor" não conhece o meu trabalho literário.
Agora há uma grande oportunidade para baixar gratuitamente o e-book que escrevi para a Editora Mojo Books, inspirado no álbum Aqualung, da banda britânica Jethro Tull.

O enredo é a história da filha de um banqueiro em busca de sua própria liberdade e descobertas.

O e-book pode ser baixado gratuitamente no site da editora. Para isto, é necessário apenas realizar um rápido cadastro.

Aqualung
Baixe aqui

Monday, December 08, 2008

A Linguagem do dia-a-dia na Literatura

A tendência natural de todo escritor é começar escrevendo de maneira semelhante à que fala.
Estamos imersos na linguagem oral desde que nascemos, desde as primeiras palavras que nos dirigem nossos pais. Primeiro, aprendemos a falar, a comunicarmo-nos através da emissão e articulação de sons.
O hábito da escrita só começa a surgir posteriormente, muitas vezes apenas quando passamos a freqüentar a escola. Por isto, quase sempre a competência de expressão escrita é inferior à competência oral.
As regras que regem a linguagem valem tanto para a fala quanto para a escrita, são exatamente as mesmas normas gramaticais. No entanto, o uso, a necessidade de comunicação rápida, ou mesmo vícios e corruptelas no interior duma comunidade lingüística afastam a escrita e a oralidade.
Por mais que a linguagem falada anteceda a escrita, isto não significa que esta deva reproduzir literalmente a primeira. São níveis de comunicação diferentes e, enquanto a escrita pode ser utilizada para meros fins comunicativos, a escrita literária transcende esta instrumentalidade. A Literatura comunica, mas sem perder os requintes, as sutilezas e a beleza da linguagem.
Até o século XIX, os limites entre a linguagem literária e a oral eram muito evidentes. Não era à toa que a literatura era conhecida como belles lettres, em oposição à escrita voltada para a simples comunicação de algo.
O modernismo do século XX surgiu em contraposição ao beletrismo, recorrendo, assim, a uma proximidade à língua do dia-a-dia, trazendo para a Literatura o mundano, o minimalismo, as imperfeições, o simplório, o feio. Apesar de haver expandido a compreensão do que é Literatura, a modernidade também instaurou a ausência de critérios de avaliação: tudo passou a ser arte, tudo passou a ser literário.
Assim como em todas posições antagônicas, o debate entre coloquialismo e purismo arrebanha seguidores nas duas direções. Os autores de orientação beletrista defendem uma autonomia da linguagem literária, enquanto que os de índole modernista trazem para suas páginas a língua ordinária.

Analisemos, então, alguns pontos que contribuirão para compreendermos como nossas escolhas influenciam nossa escrita.

1 - a literatura não é a realidade, portanto, não precisa ser regida pelas mesmas práticas, pelas mesmas leis, pelos mesmos princípios presentes no mundo real.

No mundo real, as performances lingüísticas costumam variar de acordo com nosso interlocutor: quando falamos com uma pessoa mais "simplória", há uma tendência a usarmos um vocabulário menos rebuscado, diante de interlocutores mais sofisticados, tentamos elaborar sentenças mais complexas.
Isto não é uma prática existente apenas entre os mais educados (educação formal), mas presente em todas as classes sociais. Basta assistirmos a um telejornal para ver como todos tentam "falar bonito", mesmo que acabem incorrendo em mais erros por causa disto.
Na verdade, esta nivelação lingüística é, em parte, uma prática inconsciente de rapport, de identificação entre os falantes. Lembro-me duma entrevista do Ratinho para o programa "Observatório da Imprensa", quando, um dos entrevistadores perguntou ao apresentador:
- No seu programa, você fala errado muitas vezes. No entanto, aqui, você não cometeu um único erro de português? Por quê?
Então, o Ratinho respondeu:
- Porque eu preciso falar igual ao meu público.
Ou seja, na vida real, a seleção de qual registro da língua utilizaremos influenciará no modo como seremos recebido por nossos ouvintes.

2 - Como a literatura não é a realidade, mas um simulacro, ela precisa estabelecer quais são as regras que a regem.

Se partirmos da lógica anterior, não há nada de errado em optar pelo coloquialismo, posto que o autor é o senhor do mundo literário que cria. No entanto, ele estará delimitando o horizonte de interpretação e de recepção da obra. Aliás, toda vez que um autor faz uma escolha, de tema, enredo, linguagem, ele já está delimitando seu público.
Um público em busca dum texto mais sofisticado pode não receber bem um texto coloquial, do mesmo modo que um leitor em busca de algo mais "real", pode não receber bem um texto formal. Quer dizer, é uma questão de escolha, de direcionamento.
Mas estas regras precisam estar claras e fazer sentido no interior da obra. É necessário haver coerência: um personagem não pode falar errado em certos trechos, mas falar certo (com as mesmas palavras) em outro, sem alguma razão óbvia.
Graciliano Ramos é muito hábil na hora de se apropriar destes dois níveis de discurso. Em "Vidas Secas", por exemplo, ele apresenta uma vida mental muito intensa em seus personagens, até para a cachorra Baleia, porém os personagens não possuem vocabulário para expressarem seus pensamentos, por isto, quase sempre os diálogos são lacônicos. Quer dizer, há uma ruptura entre pensamento e fala: em suas mentes, os personagens possuem um léxico e uma fluência que não correspondem ao vocabulário simples e pragmático da vida cotidiana.

3 - A língua é construída historicamente, por isso, o que é erro hoje, amanhã é norma.

Sem dúvida, este é o maior ponto em defesa do coloquialismo, pois muitas práticas consideradas erradas em autores pretéritos, hoje são normas gramaticais e ortográficas.
No entanto, há um problema bastante específico nesta mutabilidade da língua: várias expressões populares e gírias caem rapidamente em desuso, assim, rechear um texto com tais expressões pode empobrecer a compreensão dum eventual leitor futuro. Euclides da Cunha e Camões serão compreendidos por um leitor de língua portuguesa daqui cem anos, mas as músicas dum funqueiro provavelmente serão bem menos compreensíveis.
Eu, enquanto escritor, penso tanto no leitor de hoje, quanto o de amanhã, por isto, acabo escolhendo escrever dum modo a conceder maior durabilidade a meus textos. Lembro-me de muitas gírias minhas de infância que hoje nem são mais utilizadas e que até denunciam minha idade (beirando a casa dos 30).
Quer dizer, escrever "uma brasa, mora?" num texto que não seja histórico é uma autodenúncia, além de datar, às vezes equivocadamente, tal escrito.

Enfim, a escolha entre um tom coloquial ou formal na Literatura será um direcionamento de quem lerá nossas obras: quanto mais coloquial, mais acessível será para o leitor, porém, como a fala está em constante mutação, menor será a perenidade do texto; quanto mais formal ou rebuscado, maiores serão as dificuldades do leitor para assimilar o sentido, mas, a longo prazo, mais duradoura será a mensagem.

A opção lingüística pode até se fundamentar em princípios estéticos, mas suas conseqüências são bastante práticas e dizem respeito diretamente a que tipo de leitor — e de leitura — a obra se destinará.


Publicado originalmente na Revista SAMIZDAT

Friday, December 05, 2008

Entrevista para o blog "Comunica Tudo"

Henry Alfred Bugalho, 28 anos, é graduado em Filosofia e especialista em Literatura e História, é autor de quatro romances, do best-selling "Guia Nova York para mãos de vaca”. Escritor colaborador em alguns sites, nasceu no Brasil e hoje vive em Nova Iork. Em entrevista fala sobre a Oficina Editora,Samizdat, propriedade intelectual, literatura e outros assuntos.
Marcelo Augusto D’Amico – Primeiramente, é com enorme satisfação que faço esta entrevista. Tenho muitas perguntas, mas selecionarei algumas, caso contrário esta entrevista se tornará um livro (risos). Comecemos pelo "Guia Nova York para mãos de vaca”, com matérias publicadas no Globo, portal Terra, enfim: como foi a repercussão do Guia e como surgiu a idéia do formato em livro?
Henry Alfred Bugalho – Ao contrário dos meus outros livros, o guia de Nova York foi obra do acaso. Eu mantenho blogs desde 2004, mas a maioria sempre permaneceu naquele limbo dos blogs, alguns poucos leitores fiéis e muitos perdidos que chegam lá acidentalmente. Mudei-me para Nova York em 2006 e logo descobrimos, eu e minha esposa, que aquele papo de que Nova York é a cidade mais cara do mundo era um mito. Desta descoberta, surgiu a idéia de criar um blog para contar nossas descobertas sobre esta cidade maluca, voltado para aquele turista que sabe qual é o valor do dinheiro. Então comecei a falar de museus, restaurantes, passeios, lojas, ou qualquer outro assunto que se encaixasse no perfil do viajante econômico, denominado por nós como "mão-de-vaca". Após um ano mantendo o blog, os leitores insistiam para que nós lançássemos um guia, compilando as dicas que já estavam no blog. Quando demos uma olhada no conteúdo que possuíamos, o livro estava praticamente pronto. Só adicionamos mais algumas dicas e mandamos para a gráfica.
No entanto, a primeira grande dúvida nossa foi: tentar publicar por uma editora comercial ou por conta própria?
Entramos em contato com as editoras e algumas demonstraram interesse, no entanto, apenas para testarmos a repercussão, lançamos também uma edição independente e o sucesso foi tão grande e inesperado que desistimos de publicar por uma editora comercial, e isto por duas razões principais: 1 - poderíamos continuar divulgando o material através do blog, sem custo algum para os leitores; e 2 - o nosso lucro é muito maior, enquanto que com uma editora comercial nosso lucro seria de 10% do preço de capa, com a venda dos e-books nosso lucro é de 100%.
Assim, o blog se tornou a vitrine do guia, e quem o adquire sabe muito bem o que está comprando.
Apesar de ter começado como um projeto despretensioso, logo descobrimos que o "Guia Nova York para Mãos-de-Vaca" estava suprindo um nicho quase inexistente no Brasil e isto é, em boa parte, o segredo de sua aceitação.
MAD – Além do Guia, você também participa da revistaSamizdat: como surgiu o projeto? E mais, no blog, o texto “Por quê Samizdat?” lembra algo de Foucault e Adorno (autores que estou lendo agora). Existe alguma relação teórica na concepção da revista? 
HAB – A Revista SAMIZDAT é a terceira etapa duma idéia que começou numa comunidade do Orkut, a "Escritores - Teoria Literária".
A verdade é uma só: todo escritor quer ser lido. E a internet propiciou a uma legião de autores que jamais seriam lido em outra época a oportunidade de mostrarem seus trabalhos. Antigamente, os textos de autores inéditos iam para o fundo da gaveta e de lá para o lixo; hoje, eles vão para um blog, ou para um site de relacionamentos. Por isto, ficou muito difícil para o leitor separar o joio do trigo; são tantas as opções, que acabam sendo opção nenhuma. Quando criei aquela comunidade do Orkut a intenção era evitar esta mendicância literária - "leiam-me, por favor!" -, lá, só poderia haver debates sobre o fazer literário, sobre como escrever bons textos. No entanto, após algum tempo, percebi que apenas isto não bastava, por isto abri uma segunda comunidade, para realizarmos uma espécie de oficina literária virtual, onde poderíamos escrever e analisar os textos uns dos outros. E o nível foi tão espantoso, com autores tão talentosos e com uma produção tão diversa - pois lá há autores de vários estados brasileiros e de várias cidades portuguesas -, que concluímos que precisávamos expor os resultados para outras pessoas. Foi quando surgiu a SAMIZDAT.
O nome da revista foi selecionado através duma votação. Eu o propus após ter lido uma biografia sobre Alexandr Solzhenitsyn e como ele, durante os tempos da repressão soviética, distribuía seus romances através de publicações clandestinas, conhecidas como samizdats. O princípio era simples, qualquer um que recebesse um samizdat - que poderia ser ficção, crônicas, ou crítica ao governo - deveria fazer uma cópia, ou cópias, e passar adiante. Então as samizdats se proliferavam pelo submundo da USRR, através de cópias datilografadas ou mimiografadas.
A relação que você estabeleceu entre Foucault, Adorno e a SAMIZDAT procede, pois hoje não estamos, pelo menos no Brasil e em Portugal, sob um regime repressor, mas estamos dominados por um processo de exclusão determinado pura e simplesmente pelas leis de mercado.
Vende? Então é publicável.
Só que existe um problema sério neste raciocínio: como saberemos se uma obra literária é vendável se ela não for submetida ao crivo popular?
Então a Indústria Cultural acaba por se auto-alimentar, sempre arriscando em assuntos, gêneros e autores confortáveis, cujo retorno financeiro será certo, vetando assim qualquer renovação.
A proposta da SAMIZDAT é a proposta da própria revolução cultural que tem surgido através da internet: esta renovação das artes tem de vir de fora, tem de surgir pelas mãos de quem está fora do processo. Aquele criador que desde sempre esteve relegado às sombras, agora pode ser visto, conhecido e lido, sem precisar se pautar por princípios mercadológicos. Quem quiser ler, leia, é de graça; e é de altíssima qualidade!
MAD – Um livro podendo ser comprado ou “baixado” gratuitamente na internet, como por exemplo “O Covil dos Inocentes”, faz alguns escritores encararem esta atitude como um “suicídio financeiro” do autor. Esta também é a proposta da “Oficina Editora”. Você acha que um formato pode prejudicar o outro? 
HAB – Este é um problema sério e algo que as novas gerações de escritores terão de solucionar.
Tanto "O Covil dos Inocentes" quanto o "Guia Nova York para Mãos-de-Vaca" partem do mesmo fundamento: a cultura deve ser livre. Ambos podem ser lidos gratuitamente em blogs, mas há uma única diferença, o e-book do guia é comercializado, o e-book do romance é baixado gratuitamente.
Isto não é por acaso.
Quando um autor desconhecido escreve um romance, ele está buscando um espaço entre vários outros autores conhecidos e milhares de outros desconhecidos. São muitas obras para poucos leitores, então as editoras fazem uma primeira triagem, as livrarias uma segunda, e, por fim, o leitor é quem decide. Agora, imagine a seguinte cena: numa prateleira há um livro meu, outro do Paulo Coelho e um terceiro de Luís Fernando Veríssimo. O leitor não me conhece, mas conhece muito bem aos outros dois. Qual será a dúvida dele: Paulo Coelho ou Veríssimo? O autor desconhecido está fora do páreo. O leitor tem uma expectativa, e ele escolherá aquele livro que provavelmente a suprirá. Ele não tem como saber se a obra do autor desconhecido é tão boa, ou melhor, quanto as dos outros autores.
Eu até tentei vender "O Covil...", mas só conseguir vender 2 exemplares. Livro custa caro; o leitor não vai se arriscar. No entanto, desde que disponibilizei o e-book para download gratuito, foram baixados quase 300 exemplares num curto espaço de tempo. E teve leitor me contatando para elogiar a obra. Quer dizer, neste caso, "suicídio literário" seria tentar competir em pé de igualdade com quem já é estabelecido.
Já o guia de Nova York, ele é único em língua portuguesa, não há nada parecido com ele no mercado. Logo percebi que eu poderia torná-lo rentável. Além disto, houve uma lógica muito básica nisto tudo: "um indivíduo vem a NY para fazer turismo. Ele vai gastar tranqüilamente 3 ou 4 mil dólares na viagem, que mal vai lhe fazer gastar 12 reais num livro que pode cortar seus gastos pela metade?"
Ou seja, no final das contas, eu vendo o que é vendável, assim posso distribuir gratuitamente o que ainda não é. E mesmo se um dia for, pela minha experiência, livre acesso à informação e à cultura só ajuda na comercialização duma obra.
A Oficina Editora é, de certo modo, uma expressão disto. Os autores que fazem parte dela sabem das dificuldades de se vender um livro, mas também não querem abrir mão de serem lidos. É uma troca: um livro gratuito por um pouco de atenção do leitor. Talvez, este mesmo leitor seja aquele que comprará um livro nosso quando este estiver na livraria. Assim, a dúvida será: o livro do Paulo Coelho, do Veríssimo ou o meu?
MAD – Ainda relacionado ao mundo virtual, existem muitos debates sobre direitos autorais, Creative Commons, propriedade intelectual; principalmente questionamentos sobre dispor uma obra na internet e ficar desprotegido de seus direitos de autor. O que você pensa deste assunto?
HAB – O momento em que estamos é duma crise paradigmática. Em breve, muitos daqueles conceitos que nos eram patentes se tornarão obsoletos. Os direitos autorais, ou melhor, os copyrights, foram criados para proteger o autor, para resguardá-los em seus direitos sobre a obra literária, isto numa época em que o mundo editorial era um "oba-oba". Vale lembrar que o próprio Cervantes foi plagiado. No entanto, os copyrights acabaram se tornando uma arma para excluir uma parcela gigantesca da população de ter acesso à cultura. O que era uma proteção do criador, tornou-se uma maneira de penalizar os leitores e aumentar o lucro das editoras. Tudo passou a ser dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Mas a era digital inaugurou uma nova mentalidade.
A primeira grande mudança tem sido a relação entre produtor cultural e receptor. Anteriormente, os limites eram muito distintos. Havia os produtores, no topo duma pirâmide cultural; eles determinavam o conteúdo, o que as pessoas queriam consumir. Agora, qualquer um é um produtor cultural. Fulano vai no youtube e põe um filme caseiro; cicrano vai no blog e posta um conto; beltrano grava um mp3 caseiro e milhões de pessoas ouvem sua música. Está havendo uma democratização da arte, não apenas no sentido de acesso a ela, mas de possibilidade de todos se tornarem também criadores.
A segunda mudança tem a ver com os modos de divulgar o trabalho. Antes, para um autor inédito, a única saída era distribuir o manuscrito entre amigos. Com a internet, qualquer um pode ser visto por milhares de leitores numa questão de segundos. E esta interatividade é crucial em nossos tempos. Os escritores sempre reclamaram que a escrita era um ofício solitário. Hoje, não é mais. O autor que não dialoga com seus leitores, que não respeita seus comentários, que não tentar compreender seus anseios, está fadado.
E a terceira, e talvez a mais importante, está se instaurando uma nova relação entre o autor e sua obra. Os escritores aos poucos estão começando a perceber que não são donos de seus textos, que o que fazem pertence a uma grande trama de outros textos, de outras referências, mais ou menos aquilo que Foucault chamou de "a morte do autor". E esta noção de que "o que é meu, também é de todos" está gerando uma rede de produção coletiva e a Wikipédia talvez seja o maior exemplo disto. São milhares de pessoas colaborando para criar uma gigantesca enciclopédia, e ninguém ganha nada com isto, nem mesmo notoriedade. É um anonimato colaborativo que permite o surgimento de algo grandioso.
Ou seja, nós estamos no olho do furacão. Todas estas mudanças ainda nos causa aporia, enche-nos de questionamentos. Estamos vendo a queda dos velhos paradigmas, mas ainda não podemos vislumbrar quais serão os novos. Certamente que o autor do futuro breve terá de encontrar novas formas de gerar renda, talvez através de anúncios publicitários (que têm migrado da mídia impressa para a internet), ou através de patrocinadores. Mas algo mudará, e seremos talvez menos ambiciosos, mais conscientes da nossa pequena participação numa enorme engrenagem cultural.
A cultura que se originará deste processo estará em oposição à cultura de massas, não será mais algo voltada para todos, mas sim para nichos, para pequenos grupos, para pequenas comunidades. Todos terão de encontrar seus leitores, e todos terão de encontrar também seus autores.
MAD – Costumo abordar com escritores a falta de hábito da leitura nos brasileiros. Você, como morador da “Big Apple”, nota diferença entre Brasil e EUA neste aspecto?

HAB – Eu escrevi um artigo sobre isto, chamado "O Medo do Livro". No Brasil, os programas de alfabetização surgiram simultaneamente ao advento da TV. O brasileiro possui uma TV em casa, mas nunca leu um livro na vida. Estamos diante duma competição desigual. E livro é um artigo de luxo, custa caro, é um entretenimento com prazo de vencimento (o ponto final) e individual. A TV é coletiva e sempre apresenta novidades.
Nos EUA e na Europa, por outro lado, as revoluções tecnológicas na área de cultura ocorreram aos poucos. Primeiro a imprensa, depois o rádio, o cinema, a TV, o videocassete, a internet, e assim por diante. Foram etapas, e quem aderiu a uma não perdeu o hábito da outra. E as empresas investem pesado para não perder seus consumidores. Livro nos EUA é baratíssimo - algo em torno de 10 dólares -, se você comprá-lo num sebo, pode sair por centavos. Eu, em pouco mais de dois anos, tenho mais livros do que nos 26 anos que vivi no Brasil. Aqui, cultura não é inacessível. Você vai num biblioteca pública e pode emprestar até 30 livros duma só vez, e tem uma biblioteca por bairro. Quer dizer, há uma infraestrutura cultural que abarca desde quem tem grana até quem não tem. Isto facilita o acesso.
Além disto, os americanos já compreenderam que você tem de saber qual é o seu leitor, e por isto existem linhas editorais para vários segmentos da sociedade: para negros, para homossexuais, para mulheres, para estrangeiros. Deste modo, a leitura passa a se tornar também um posicionamento ideológico, uma demonstração de identidade.
MAD – Hiperficção: constitui-se de histórias repletas de bifurcações e com várias escolhas de seqüência narrativa. Você já se aventurou por este gênero, e como fica o processo de criação num gênero não linear de história? 
HAB – Eu arrisquei neste formato por um breve período, mas o planejamento duma narrativa longa é algo extremamente complexo. E o público é muito limitado. Acaba não valendo muito o esforço, no final das contas.
Cheguei até a escrever um manifesto para defender o formato, mas descobri que eu estava sendo ingênuo, pois acreditava que ninguém mais estava se arriscando em produzir hiperficções. Recentemente, li um livro teórico de Aarseth sobre aquilo que ele batizou de "literatura ergódica", ou seja, aquela literatura que rompe o fluxo tradicional de leitura - e a hiperficção é uma forma de literatura ergódica - e descobri que isto tem sido feito por milhares de anos. O I-Ching é usado como um exemplo, um livro que é consultado através dum oráculo e que não foi feito para ser lido de cabo a rabo.
A internet provou ser um ambiente bastante propício para a criação de hiperficções, pois é um universo tridimensional, ao invés da "bidimensionalidade" do livro físico. Atualmente, estou escrevendo um romance não-linear, mas não ando muito motivado...
MAD – Quais autores ou livros, para você, são essenciais na literatura? Quais obras você considera geniais? 
HAB – Esta é uma pergunta muito difícil. Eu posso pensar nos autores que são "essenciais para mim", mas a lista é tão grande que eu nem saberia por onde começar. Mas só para citar alguns: Jorge Luis Borges, Kafka, Dostoievsky, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Pushkin, Balzac... Posso dizer que, na minha vida, existem três abismos literários, que são aquelas obras que mudaram minha concepção de literatura: "Ulisses" de James Joyce, "Ficções" de Jorge Luis Borges e "O Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa. Para mim, é muito difícil criar tendo tais sombras sobre mim. É uma luta página após página.
MAD – Por fim, agradeço muito por esta entrevista, e gostaria que deixasse aqui seus principais endereços para quem quiser lhe conhecer mais. 
HAB – Só de blogs eu tenho quase uma dúzia (risos). Bem, o trabalho literário que mais me tem dado satisfação é a Revista SAMIZDAT (www.samizdat-pt.blogspot.com). Há o meu blog no qual traduzo algumas dicas para escritores iniciantes e posto ensaios meus, que é o "Blog do Escritor" (www.blogescritor.blogspot.com) e o meu pessoal, com contos, "Miríades" (www.miriades.blogspot.com). Por fim, mas não menos importante, é o meu trabalho mais distante da Literatura e o que mais tem rendido frutos, o "Nova York para Mãos-de-Vaca" (www.maosdevaca.com). Há outros, mas ficam pra próxima...
E eu sou quem agradece pela atenção, Marcelo.

Entrevista dada a Marcelo D'Amico para o blog Comunica Tudo

Saturday, November 08, 2008

A Tese na Literatura

Todo texto defende uma tese.

Quando afirmamos isto, não nos referimos apenas a textos acadêmicos, ou teóricos, mas a todo e qualquer texto, incluindo o texto literário.

Antes de tudo, devemos explicar o que se entende por “tese”. Thesis é uma palavra grega derivada do verbo tithemi, cujo sentido nada mais é do que “colocar em algum lugar, apresentar algo”. Este é praticamente o mesmo sentido da palavra latina propositio, ou proposição, em português.

A tese, ou a proposição, é aquilo que é posto diante dos olhos do leitor, aquilo que o autor deseja apresentar.

Numa carta de amor entre namorados, a tese é provar os sentimentos amorosos dum para o outro; num texto teórico universitário, a tese é a demonstração e comprovação duma hipótese; em qualquer texto, existe uma tese, uma idéia a ser defendida, mesmo que ela esteja diluída e pareça ser inexistente.

Na Literatura, a tese costuma transparecer de duas maneiras mais comuns: explicitamente, quando a proposta do texto é convencer o leitor a aceitar a tese, ou implicitamente, quando o texto estimula o leitor a concluir, por si só, qual é a tese.

A Literatura Panfletária

A narrativa literária que defende explicitamente uma tese e que utiliza todos os recursos necessários para persuadir o leitor de sua veracidade é conhecida por “panfletária”.

A literatura panfletária não possui orientação política específica, pode tanto defender ideais esquerdistas quanto de direita, pode ser tão reacionária quanto revolucionária, tão anárquica quanto conservadora.

O “panfleto” não diz respeito às idéias que estão presentes numa obra literária, mas ao modo como elas são apresentadas. O texto panfletário não esconde a que veio, não mascara seus objetivos.

A Literatura panfletária atrai os correligionários da tese defendida, ao mesmo tempo em que repele quem a ela se opõem. Não aceita meio termo.

Um exemplo é “O Último Dia dum Condenado à Morte” de Victor Hugo. Nesta obra, acompanhamos um prisioneiro pouco antes de sua execução na guilhotina. Victor Hugo se opunha à pena capital e tanto nesta obra como em outras, ele defenderá este ideal. No entanto, o que diferencia “O Último Dia dum Condenado à Morte” de “Os Miseráveis” é exatamente a opção do autor em, na primeira obra, tornar a tese evidente, isto é, o repúdio à pena de morte.

Como dissemos anteriormente, esta escolha do autor delimita o leitor que acolherá o texto, alguns concordarão com ela, outros discordarão e, aquele que estiver indeciso, poderá ser convencido pelos argumentos, ou se constrangerá por causa da tentativa do autor em manipulá-lo.

A Tese Implícita

Uma narrativa literária também pode apresentar a sua tese sem evidenciá-la.

Na verdade, a Literatura panfletária aborda uma tese sob a mesma ótica dum texto teórico. A tese precisa ser demonstrada, para tanto, apresenta-se casos nos quais ela pode ser aplicada. A ficção situa então a tese num caso ficcional, que através do enredo visa comprovar a tese que a motiva. Retornando ao exemplo da obra de Hugo, para provarmos que a pena de morte é cruel, apresentamos um personagem sofrendo por causa da expectativa da execução.

Já no caso duma obra na qual a tese esteja implícita, o autor geralmente tenta falsear a tese defendida, ou apresenta uma tese contrária que será, no decorrer da narrativa, refutada.

Podemos utilizar outra obra de Hugo como exemplo: em “Os Miseráveis” a tese inicial parece ser a de que “um criminoso nunca se recupera, nunca mais pode ser reinserido na sociedade”.

Como Hugo introduz esta falsa tese?

Jean Valjean é libertado da prisão, mas como ele é um ex-condenado, ele é obrigado a carregar um passaporte amarelo, o que faz com que ele seja estigmatizado pela sociedade. Nem teto para dormir ele consegue encontrar.

No entanto, um bispo o abriga em sua casa. Naquela mesma noite, Jean Valjean resolve roubar a casa de seu anfitrião, ou seja, a tese parecia ser: “Jean Valjean (e, por extensão, todos os demais ex-condenados) sempre será um criminoso”.

Mas o protagonista é capturado e reconduzido à presença do bispo, que, ao invés de acusar Jean e enviá-lo novamente para a prisão, mente para a polícia, dizendo que os bens roubados eram, na verdade, presentes seus para Jean.

Esta atitude do bispo é um ato de perdão que Jean jamais poderia imaginar. Daquele ponto em diante, ele decide que será um homem correto. Todo o restante do enredo trata de luta de Jean para apagar seu passado e provar que ele está mudado.

Victor Hugo compreende que esta é a maneira mais eficaz para abordar tal tese. Através dos atos de Jean Valjean, o autor acaba conduzindo o leitor à conclusão de que um homem pode mudar, que um criminoso pode se recuperar.

Através da negação, através de caminhos tortuosos, o autor pode conduzir o leitor até a tese defendida.

Outro bom exemplo é a obra-prima de Dostoievesky, “Crime e Castigo”. Nela acompanhamos o personagem Raskolnikov, um estudante russo que elabora uma teoria: “as pessoas estão divididas em duas categorias: as ordinárias, para quais as leis e normas morais valem, e as extraordinárias, que estão acima do bem e do mal”. Raskolnikov acredita fazer parte da segunda categoria, acredita ser extraordinário. No entanto, quando ele assassina sua senhoria, ele começa a constatar que talvez estivesse equivocado, que ele também faz parte dos homens ordinários. Em Dostoievsky, quase sempre a tese é a antítese do que ele apresenta no início de suas obras.

Tese Explícita ou Implícita?

Todo texto defende uma tese. Contudo, a abordagem desta tese faz parte do planejamento duma obra literária. O autor deve saber, de antemão, qual será a tese defendida, e como ele fará para que o leitor a perceba.

A opção entre um texto panfletário ou um com tese implícita nunca é descompromissada. A abordagem dependerá do público para o qual a obra se destina, da proposta do autor e também da própria tese defendida.

Não é tão simples estabelecermos uma hierarquia de valores e considerarmos as obras panfletárias como piores do que aquelas com tese implícita. Na verdade, para alguns leitores, apenas uma obra com objetivo explícito é compreendida; nem todos possuem o refinamento para ler as entrelinhas dum texto cuja tese esteja disfarçada.

Entretanto, a História da Literatura costuma destacar os autores que conseguem defender suas idéias sem dogmatismo, sem proselitismo. Via de regra, uma obra de Arte é aquela capaz de tocar, de algum modo, todas as pessoas, concordem elas ou não com a tese apresentada.

E, para muitos leitores, desvendar os mistérios, desencavar os porões duma obra literária para desvelar seu sentido é uma grande recompensa. Prêmio comumente recusado por obras panfletárias.

Monday, November 03, 2008

Criando um blog de sucesso

Em março de 2007, eu criei um blog para compartilhar da minha experiência em Nova York. 
Como eu não queria que ele se parecesse com aqueles blogs de adolescentes, como "hoje fui ao shopping e encontrei minhas miguxas", acabei optando por retringi-lo a um assunto bastante específico: "como ir a Nova York sem gastar muito". E por isto batizei o blog de "Nova York para Mãos-de-Vaca".

A idéia deu certo. Atraiu leitores e, menos dum ano depois, apareceu pela primeira vez na mídia, num programa da Globo Internacional. Desde então, o blog se tornou uma atração, virou livro (o Guia Nova York para Mãos-de-Vaca), fui entrevistado para o Portal Terra, para telejornal do SBT, para jornais impressos e sites brasileiros e estrangeiros, e o livro é um dos mais vendidos da editora que o publica.

Ou seja, o que parecia impossível, criar um blog de sucesso e rentável, se tornou realidade.

As dicas que se seguem foram dadas a um amigo meu, cineasta curitibano, que acabou de criar um blog para divulgar seus trabalhos cinematográficos e queria algumas sugestões para divulgá-lo:

"Fazer a divulgação dum blog é um pouco mais complicado do que parece.

 - é preciso ter um bom conteúdo, boas palavras-chaves (os marcadores) e atualização constante (pelo menos no começo);

 - divulgar o link em todo lugar que você puder. As comunidades do orkut são uma boa estratégia, em fóruns de cinema, ponha o link como assinatura do seu e-mail, comente em blog de outras pessoas e ponha o seu link.

- O mais importante é que haja um conteúdo que interesse os leitores, que faça eles buscarem o seu blog e divulgarem-no para outras pessoas. O boca-a-boca é fundamental.

Por exemplo, além de postar os seus vídeos no blog, você poderia escrever posts curtos sobre o que você já aprendeu sobre cinema, como fazer edição, quais programas utilizar, como dirigir atores. Entendeu?
Por exemplo. fazer um blog para aqueles que querem aprender cinema sob o ponto de vista dum diretor, de alguém que trabalha no ramo. Isto é um diferencial, isto atrai leitores.

- Você precisa encontrar o seu nicho, descobrir o seu público-alvo. A sua mensagem tem de ser direcionada, tem de encontrar os ouvidos certos em meio à multidão. Não adianta tentar atingir todo mundo, você tem de atingir as pessoas certas.

- E quanto mais leitores você tiver, melhor será o seu posicionamento na busca do Google, quanto melhor o seu posicionamento, mais leitores atrairá, é um círculo virtuoso.

- O que você não pode fazer é sonegar informações; pensar que, ao ensinar aos outros o que você sabe, você estará criando a concorrência. Isto não é verdade, quando você ensinar os outros, você estará criando seguidores.

E se você for bom no que faz, a concorrência não importa.

- Além disto, ao atrair leitores para os seus textos (ou você pode até fazer breves vídeos tutoriais), você também estará atraindo espectadores para os seus filmes. Você ajuda as pessoas com o seu conhecimento, mas também estará se ajudando, autopromovendo-se e divulgando o seu trabalho.

- O fundamental é ser diferente, fazer algo que ninguém fez, ou fazer melhor do que os outros.

- Também não desanime no começo. Vai demorar para as coisas começarem a engrenar, talvez dois, ou três meses. Talvez até mais. No entanto, há um ponto em que as coisas começam a andar sozinhas.

- Outra opção de conteúdo é também você falar de filmes que você acha bons e explicar por quê, e aproveitar para ensinar algo sobre cinema. Você precisa falar do que entende. Não adianta nada falar do que não sabe, ou fingir que sabe mais do que sabe. Se não souber responder uma pergunta dos seus leitores, seja honesto, diga: "Não sei". Mas isto não basta, se não souber, vá pesquisar e apresente a seus leitores o que você aprendeu.

- E também não se esqueça do adsense, o sistema de publicidade do google. Se você tiver boa visitação, dará até para ganhar uns trocos com os anúncios no blog. 100 ou 200 dólares a mais na renda por mês não é nada mal. Mas tem gente que faz bem mais do que isto.

- E respeite os seus leitores. Se eles comentarem no seu blog, responda as dúvidas, aceite as críticas, corrija as postagens se for necessário. Estimule o diálogo.

- O objetivo de todo blogueiro é tornar-se uma referência no assunto que aborda. E isto só ocorre quando houver um bom conteúdo. Apresente algo interessante e original, e todo o resto ocorrerá naturalmente.

Thursday, October 09, 2008

A Atualidade do Conto

O conto é provavelmente a primeira forma narrativa da Humanidade. Sua origem se confunde com a necessidade intrínseca do ser humano de contar uma história a seus pares.
Tudo começa com uma história, o que há para ser contado, o enredo. O conto é curto o suficiente para entreter e não entediar quem o ouve ou lê, mas longo o suficiente para ocupar o tempo dos ouvintes/leitores.

Esta unidade temporal é a base do conto: uma história, um evento, com brevidade.
Mas os gêneros longos, como a epopéia e, posteriormente, o romance, precipitaram o conto a um poço de desprezo. A brevidade da forma se tornou sinônimo de frivolidade; a unidade serve para acusação de ser uma forma simplória.

Quase todo escritor canônico, por mais que tenha se aventurado a escrever contos, necessitou duma obra longa para legitimar seu talento. São raros os exemplos de autores meramente contistas, e podemos incluir Maupassant, Pushkin, Borges e Dalton Trevisan nesta lista, mas mesmo estes também tiveram de ceder às obrigações de gêneros mais longos.

E é a ilusão de facilidade que motiva vários escritores iniciantes a escreverem contos; na verdade, basta produzir um texto de duas ou três páginas para poder batizá-lo de conto. As reflexões teóricas de grandes autores também não contribuem para uma definição consensual, por isto, chegou-se à conclusão de que conto é qualquer coisa de indefinível, que apenas o autor é quem possui o privilégio de afirmar se um texto é conto ou não.

Os norte-americanos são bastante pragmáticos, estipulam o limite máximo do conto em vinte mil palavras; os latino-americanos são bem mais românticos, apresentando rebuscadas teorias sobre o conto, sempre lançando a questão e solução para o nível subjetivo.

Mas todos parecem concordar em um ponto: o conto é uma unidade, fala dum único assunto. Para termos uma idéia do que isto significa, basta vislumbrarmos a vida duma pessoa — nascemos, crescemos, freqüentamos uma escola, muitos se casam, têm filhos, vão ao trabalho, envelhecem, morrem... —; se apanharmos a totalidade desta vida, ou boa parte dela, podemos escrever um romance, no entanto se apanharmos apenas um destes aspectos, casar-se por exemplo, ou parte deste aspecto, então poderemos escrever um conto.

O romance abrange uma totalidade, que pode ser a soma das partes da vida dum personagem, ou a soma de trechos das vidas de vários personagens; o conto, por sua vez, procura a singularidade, o ponto crítico, o momento único. O romance é um filme, precisa do tempo para contar sua história; o conto é uma fotografia, apresenta toda sua mensagem quase que instantaneamente, agarra o leitor na primeira linha e o liberta na última, não tolera arestas, não pode ser cansativo.

Durante milênios, o conto possuiu um papel acessório. Tratava-se dum exercício literário, no qual os autores podiam testar suas habilidades narrativas. Contudo, da metade do século XX em diante, o conto começou gradativamente a assumir um novo papel.

O romance, enquanto divertimento burguês, exige tempo e contemplação. O leitor se recolhe a seu quarto, ou senta-se numa poltrona e por horas mergulha naquele mundo.

Mas o conto está de acordo com o ritmo do mundo industrial, frenético, em constante mudança. O leitor encontra um conto que lhe agrade, lê-o por alguns poucos minutos e parte para o próximo texto. O leitor contemporâneo anseia por mais informações, pela maior quantidade de dados que possa adquirir no menor tempo. O conto supre esta necessidade; é dinâmico, rápido e facilmente assimilado. Pode até causar grande transformação num leitor, mas a sua pequena extensão promete uma acessibilidade.

Geralmente, os melhores contos são justamente aqueles que não são fáceis, que mesmo consumindo alguns poucos minutos, acabam por reverberar por dias ou anos na mente do leitor.
Poucas formas são tão atuais quanto o conto, e poucas possuem tanto potencial de exploração criativa e tamanhas exigências para o autor.

O desafio do contista é falar muito em poucas linhas, o do leitor, compreender o verdadeiro valor da narrativa curta.

Publicado na Revista SAMIZDAT

Tuesday, September 09, 2008

O Prazer do Terror


As pessoas são atraídas para a Literatura por várias razões, desde a mais pura e descompromissada busca por divertimento até complexos anseios estéticos.
Para leitores de gêneros leves, como romances românticos ou de aventura, a motivação é quase evidente: pomo-nos em lugar do mocinho ou da mocinha, torcemos por eles, identificamo-nos com sua história, desejamos ser como eles.
No entanto, no gênero de Terror, caminhamos por um terreno arenoso. Certamente que a maioria dos leitores não gostaria de estar no lugar do protagonista — o qual muitas vezes é a vítima. Tampouco podemos esperar que o leitor se identifique com a causa do terror. O Terror, em essência, é o que nos repele. É nesta repulsa que podemos encontrar a atração do gênero.
O Terror trabalha com os medos essenciais da Humanidade. Uma das características fundamentais do ser humano primitivo, em oposição a demais antropóides, é o culto à morte. A compreensão da morte e a necessidade de algum tipo de ritual funerário é um marco emblemático.
Desde então, a morte permanece um enigma. A despeito de todos os dogmas religiosos, de crenças pessoais, de explicações biológicas, a morte permanece um dos grandes enigmas da existência. O que há para além dela? Mero fim, ou início duma outra vida?
Não temos uma explicação definitiva para esta questão. Exatamente por isto, somos atraídos por esta questão.
A religião abrange a morte pelo prisma da esperança. Em boa parte das religiões monoteístas (e em várias politeístas), a morte é um umbral para uma outra existência, na qual usufruiremos de prazeres ou danação de acordo com nossos atos durante a vida. O Terror, por outro lado, apresenta a morte como o mistério que é. Nem tudo em Terror precisa de explicação — fantasmas, zumbis, vampiros se manifestam, superam e transcendem a morte, desafiam a racionalidade e os dogmas religiosos.
Nem por isto a religião e o Terror são excludentes. Cada uma apresenta uma perspectiva sobre o assunto — a religião buscando certezas, enquanto o Terror explora os pontos-cegos, as incertezas.
Para Bataille, a morte é o grande tabu, ao lado do sexo. Na verdade, tanto o sexo quanto a morte se aproximam, pois ambas representam o fim da individualidade. No gozo orgástico, perdemos a consciência de nós mesmos, despersonalizamo-nos, na morte, perdemos nossa identidade enquanto sujeitos, deixamos de ser. Não é por acaso que em vários filmes de Terror, o assassino em série persegue e executa quem possui relações sexuais. Isto não é apenas um resquício da moral puritana, mas a íntima relação entre duas instâncias biológicas que se mesclam à dinâmica da vida e da organização social.
No Terror, buscamos a confrontação com aquilo que nos inquieta e nos repele: a morte violenta, sangue, vísceras, o desconhecido, as trevas e o sobrenatural.
E deste confronto obtemos o prazer do medo controlado. Divertimo-nos com o que tememos porque sabemos que aquilo ocorre ao outro, seja ao personagem duma narrativa literária ou cinematográfica, seja ao protagonista duma narrativa oral, comumente contada por alguém que não está inserido no enredo. Sentimos calafrios, temos pesadelos à noite, mas no íntimo nos contentamos por saber que aquilo não ocorreu conosco. O prazer do Terror decorre por causa do medo em potência.
No entanto, assim como se dá com o humor, o terrível se insere num contexto histórico e social. Os tabus duma civilização nem sempre correspondem aos tabus de outra. Numa sociedade onde o canibalismo é aceito, a cena dum ser humano devorando outro dificilmente causaria repulsa.
O gênero Terror exige muito do escritor para a obtenção dum efeito satisfatório. Desta dificuldade origina-se o amplo espectro de subgêneros do Terror, que exploram desde a escatologia mais grotesca — o trash — até os que se enveredam em sutilezas psicológicas.
Apesar de pouco explorado entre autores lusófonos, o Terror ilumina os preconceitos, os valores e as crenças da comunidade na qual se origina.

(Publicado originalmente na Revista SAMIZDAT)

Thursday, July 03, 2008

Amadorize-se


A grande luta dos pretensos escritores ou de autores em início de carreira é a profissionalização.
O que isto quer dizer exatamente — se é uma padronização da remuneração da hora do escritor, se é a criação de sindicatos (acho que este é o suposto papel da UBE), ou qualquer outro tipo de normatização do ofício — é um mistério que um dia ainda desvendo. No entanto, este movimento me parece ser algo ultrapassado, uma mentalidade típica do século XX.


Curiosamente, enquanto eu pensava em escrever este artigo, acabei me deparando com um capítulo no livro que estou lendo — Blog! How the newest media revolution is changing politics, business, and culture — que transcrevia exatamente o que se passava na minha cabeça.

Em suma, durante boa parte do século XX, as atividades laborais tenderam à profissionalização, à regulamentação das práticas e normas de seus ofícios. Isto incluiu a criação de cursos tecnológicos, universitários, formação de sindicatos, salário-mínimo, entre várias outras conquistas do mercado de trabalho.

Enquanto o homem renascentista se orgulhava por agregar várias atribuições — matemático, físico, pintor, engenheiro, filósofo, médico, etc. — o homem moderno passou a valorizar o “recorte”, a “especialização”. Isto parece ter decorrido graças ao reconhecimento de como os saberes podem ser, individualmente, bastante vastos. No campo da Medicina, por exemplo, alguém pode passar a vida inteira estudando que não se obterá pleno conhecimento de todas as especialidades. Portanto, a especialização se tornou o signo da competência. “Restrinjo a amplidão do meu saber”, diz o homem moderno, “mas me torno o melhor naquilo que sei”.

O adjetivo “amador” se tornou algo demeritório. O amador estaria a pelo menos um nível abaixo do “profissional”. Na hora de se contratar um serviço, busca-se um profissional; recorra a um amador por sua conta e risco.

Por outro lado, o século XXI tem apresentado um panorama completamente distinto. Com o surgimento da internet, uma legião de amadores tomou conta do ciberespaço, mostrando seus trabalhos e surpreendendo, em muitos casos, pela qualidade “profissional” deles.

Fotógrafos, ilustradores, músicos, cineastas, escritores, jornalistas, amadores que estavam à margem do mundo profissional, provavelmente exercendo profissões que nada tinham à ver com tais atividades paralelas, deram suas caras a tapa e provaram que competência não residia numa faculdade, num curso técnico ou sob a égide do “profissionalismo”. E mais do que isto, o amador demonstrou ser muito mais criativo e ousado do que muitos profissionais.

Por quê?

A razão é simples, a meu ver. Não trabalhamos por prazer. Em nossos dias, trabalhamos por imposição da sociedade de consumo. Precisamos pagar as contas, alimentarmo-nos, adquirir bens de consumo, imóveis, roupas, e queremos também ostentar — jóias, automóveis, roupas de grife —, quer dizer, todos aqueles ingredientes que lubrificam as engrenagens do capitalismo. O trabalho faz parte desta estrutura de produção.

Geralmente nosso momento de prazer é durante o ócio, em nosso tempo livre. Não duvido que muita gente, na hora de escolher uma profissão, o faça crente de que fará aquilo que lhe dá prazer. E isto até pode ser verdade em alguns casos em boa parte do tempo, mas o simples fato de sermos obrigados a realizar algo (e, no caso duma profissão, provavelmente por toda a nossa vida) já é um convite à repulsa. Somos forçados a trabalhar, mas não somos forçados a termos um passatempo.

Nossos hobbies são atividades que nos dão prazer e que realizamos em nosso tempo livre. Na maioria das vezes, ninguém nos coage a isto. Escolhemos o que nos dá prazer, e o exercemos quando temos vontade. A própria palavra “amador” traz consigo este significado: aquele que ama.

O amador está livre das normas que regulamentam uma profissão. Está liberto das amarras da doutrinação e do tecnicismo. Muitas vezes, peca pela ignorância, pelo desconhecimento, mas disto acaba surgindo a originalidade.

A oposição entre amador e profissional fundada em termos de mera remuneração me parece equivocada, sob esta perspectiva. É muito mais coerente pensarmos em “aquele que é obrigado a exercer um ofício” em oposição àquele que “exerce uma atividade para deleite próprio”.
Este clamor por “profissionalização” nas Letras me parece atingir e abalar o fundamental na escrita e na Arte — não se pode obrigar alguém a criar.

Podemos até ter alguns casos na História, como a famosa imposição a Michelangelo para concluir a Capela Sistina, mas, em geral, o artista é aquele que cria independente dos resultados práticos de sua arte. Se fosse o contrário, se a Arte e a Literatura estivessem submetida às leis do comércio, obras que levam anos ou décadas para serem concluídas, como Ulisses de Joyce ou como as invendáveis pinturas de Van Gogh (que hoje valem milhões), seriam inconcebíveis, ou teriam de ser niveladas para cumprir as exigências da produção em série. Um livro por ano, ou a cada seis meses, senão o escritor não paga suas contas.

“Profissionalize-se” é nadar contra a corrente. No mundo contemporâneo, indivíduos muito competentes estão se reunindo e defendendo o ideal de que cultura e tecnologia não devem ser excludentes, que todos têm direito a elas. Por isto, surgiram projetos como a Wikipédia, sem dúvida a mais completa enciclopédia no mundo, totalmente gratuita, escrita e revisada por pessoas comuns, como eu e você, ou como os conceitos de Open Source, Copyleft, Creative Commons, que permitem aos criadores distribuírem gratuitamente seus trabalhos sem abrirem mão da autoria.

A marcha dos tempos aponta para uma direção oposta. Talvez tenhamos diante de nós novamente a imagem do homem renascentista, que desfila por entre os saberes, por entre as práticas, e as exerce livremente, para seu próprio deleite e, quem sabe, para o benefício da coletividade.

Hoje, o lema deveria ser: “amadorize-se”.

Tuesday, June 10, 2008

Por que escrevo?

Henry Alfred Bugalho

Hoje em dia, a última moda é criticar a aquisição de “capital cultural”.

Antes, o alvo havia sido o capital puro e simples — grana, bufunfa, prata, money. Uma legião de esquerdistas, de cunho marxista-leninista, se proliferou por países subdesenvolvidos, execrando os males do capitalismo, a exploração da mais-valia e a sociedade de classes.
A falência do socialismo foi um balde de água fria para esta turma. Mas, recentemente, em vários artigos que tenho lido pela internet, algo semelhante tem surgido, mas agora criticando o hábito — extremamente burguês, como negar? — de se escrever livros. “Os autores só escrevem para adquirir capital cultural”, eles dizem.
Tomei ciência deste conceito pela primeira vez através da boca duma amiga americana, mestranda de Ciências Sociais, que me explicou o que Bourdieu entendia por isto. A grosso modo, “capital social” é o conhecimento, ou experiência ou relações que alguém possui de modo a permiti-lo se destacar daqueles que não possuem a mesma formação. Este capital se divide em três instâncias: 1 – inerente, aquele que nasce com um indivíduo, ou é decorrente da formação familiar; 2 – objetificado, que é aquilo que pode ser possuído, enquanto propriedade, como uma obra de arte, um livro raro, ou algo de grande valor cultural; e 3 – institucionalizado, que decorre da legitimação de instituições culturais, como universidades, premiações, títulos e demais honrarias.
Até onde percebo, o escritor se enquadraria nestas três categorias, pois a escrita depende de algo inerente, o idioma no qual se escreve, o talento para organizar sentenças, a capacidade de observação do mundo e sua reprodução através da literatura; depende também da objetificação do livro, algo físico, palpável, que pode ser comercializado, manuseado, que traz na capa o nome do autor, que o institui como criador e dono de seu conteúdo; por fim, também possui um caráter institucional, pois o reconhecimento da Academia é uma das grandes medidas de canonização dum autor, a adoção de suas obras por uma Universidade, ou a premiação em algum importante concurso literário, ou o recebimento de alguma titulação de doutor honoris causa.
A aquisição de capital cultural faz parte do ofício da escrita, mas é isto que os autores buscam ao escreverem um livro?

Sem dúvida, há uma fetichização do livro. Aquela coisa, composta de páginas, caracteres, signos, sentido, é um universo à parte do nosso mundo cotidiano. Apesar de a escrita ser uma espécie de instrumento de comunicação — escrevemos cartas, e-mails, cartazes, jornais, revistas para comunicarmos algo a alguém, sendo que este alguém pode ser um receptor direto, alguém que conhecemos, ou um receptor indireto, uma massa desconhecida —, o livro ultrapassa esta função, ainda mais se nos restringirmos aos limites da ficção.
Um romance ou uma coleção de contos transmite uma mensagem, comunica um sentido, mas vai além, visa algo que ultrapassa a mera comunicação.
O que este “além” significa é motivo de debates acalorados através dos séculos; uns dizem ser a transmissão do Belo; outros, o estímulo de sensações e sentimentos; outros, a formação de senso crítico ou a crítica da sociedade; outros, entretenimento. As hipóteses e propostas são infindas, talvez tão numerosas quanto os volumes de livros que já foram escritos na História da Humanidade.
Eu, enquanto escritor, não me recordo de, em momento algum, eu me sentar diante do computador para escrever um conto ou romance e ser assolado pelo pensamento: “que beleza, vou adquirir mais um pouco de capital cultural!”
Acho que a primeira intenção dum autor, a mais genuína, a mais entranhada, é tentar recriar as mesmas impressões que ele teve ao ler um bom livro. Talvez o que se passe na mente, talvez até de maneira inconsciente, dos escritores é causar nos leitores aquela sensação: “eu queria ter escrito este livro”.
Isto não significa que os autores tentam imitar formal ou estilisticamente seus autores favoritos, mas sim que, no interior de seus gostos e predileções, eles gostariam de causar no leitor, através de palavras, o deslumbramento que um dia tiveram através da leitura.
A aquisição de capital cultural está atrelada ao ofício literário do mesmo modo que a aquisição de capital está vinculada ao trabalho. Se não é vergonhoso ser remunerado pela execução dum trabalho, então por que o reconhecimento através da escrita seria?

Mas não é isto que motiva um escritor, pelo menos, não deveria ser.

Se alguém me perguntasse: “por que você escreve?”, a única resposta que eu poderia dar, a mais sincera e verdadeira, é: “porque gosto; porque, acima de tudo, eu me divirto muito”.
E não há dinheiro ou reconhecimento capaz de superar esta sensação.

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Tuesday, June 03, 2008

O Medo do Livro

Quando eu era adolescente, nas férias, eu sempre viajava acompanhado por pelo menos um livro.
E toda vez que alguém me encontrava, sentado na varanda da casa da minha avó, no interior do Paraná, ou na praia, neste mesmo estado, lendo, a pergunta inevitável era feita:
— Por que você está lendo?
— Porque gosto... — eu respondia.
— Mas você é louco?

Eu não compreendia, à época, a relação entre gostar de ler e ser considerado um maluco, pois, para mim, o prazer da leitura era tão natural quanto o de assistir TV, jogar videogame ou ir ao cinema; um não excluía o outro.
Mas descobri que o brasileiro foi ensinado a temer o livro e este fenômeno está enraizado num triste contexto histórico-social.

Em 1950, mais de 50% da população brasileira era analfabeta, ou seja, dos 50 milhões de habitantes, mais de metade não conseguiria ler um livro se o tivesse às mãos.
Foi exatamente neste mesmo ano que o primeiro canal de TV foi inaugurado no país.
Dez anos depois, o analfabetismo havia caído 10%, enquanto o número de televisores havia aumentado 200 mil vezes.

Hoje, a televisão está presente em 88% dos lares brasileiros, sendo que 98% dos brasileiros assiste a TV pelo menos uma vez por semana; por outro lado, os índices de alfabetização estão na casa de 88%, incluindo os analfabetos funcionais — capazes de níveis básicos de escrita, mas sem grandes habilidades interpretativas.

Enquanto a França, a Inglaterra e os Estados Unidos haviam criado um gigantesco público leitores, acoplado a programas educacionais de qualidade, durante os séculos XIX e XX, a leitura no Brasil sempre foi precária, até o momento em que teve de dividir espaço com a desleal concorrência da TV.

Um meio de entretenimento instantâneo, atraente e novo disputou — e venceu — o obsoleto e intrincado universo dos livros. Um indivíduo com sérias limitações financeiras não deveria ter dúvida sobre como gastar seu miserável salário: 200 reais numa TV, ou o mesmo valor para uma estante com alguns poucos livros? Adquirir um aparelho que proporciona diversão 24 horas ao dia, por tempo indeterminado, para toda a família, ou comprar alguns volumes finitos (o ponto final é o fim) de prazer solitário?

Uma população (semi-)analfabeta, um mercado literário que força aos leitores um preço surreal, e o mito criado ao redor do livro sepultaram — talvez para sempre — um relacionamento íntimo entre o brasileiro e o livro.

A Literatura nunca foi vista como uma forma de entretenimento tão ou mais agradável do que as outras — TV, cinema, música, internet. Ao livro é resguardado o rótulo de “repositório de saber”, o que, nas entrelinhas, significa: “que chatice!”

O modo como as escolas apresentam a Literatura também não é dos mais agradáveis. Apesar de todos seus méritos literários, forçar alunos de 14 ou 15 anos a ler Guimarães Rosa ou Euclides da Cunha é criar uma aversão ainda maior ao livro do que a que eles já traziam desde casa. Um lar sem livros é uma casa sem leitores, mas uma escola que seleciona os livros errados está criando verdadeiros inimigos da Literatura. Eu bem sei quantos anos se passaram até eu me reconciliar com “Sagarana”.

Parece ser este o grande tabu da Literatura no Brasil — ser popular, ser entretenimento, ser agradável. Qualquer autor que porventura caia nas graças do público, deste pobre público que mal consegue comprar dois livros ao ano, é o alvo da execração crítica e moral. Vender e divertir é um convite a uma temporada no inferno literário. No Brasil, o bom autor que se preza abomina cifras, enredos lineares, personagens planas (e, por isto, facilmente assimiladas pelo “populacho”) e, o mais surpreendente, parágrafos. O bom autor brasileiro vomita tudo, sem interrupção, por 500 páginas. E se o leitor não entender, o problema é dele!
É um ciclo que se alimenta.

Numa pesquisa recente foi apresentada a estatística de que 45% dos brasileiros não gosta de ler.
Muita gente pensa — inclusive grandes formadores de opinião — que bastaria baixar o preço dos livros para se conquistar mais leitores. Isto é simplesmente ridículo. Um brasileiro paga 25 reais para ir a um jogo de futebol, mas não paga 30 reais para adquirir um livro. O que existe é uma hierarquia de prioridades, do que proporciona prazer ao que causa repulsa.

A única medida que concebo para reverter este cenário — se é que isto seja possível — é modificar a relação entre o brasileiro e o livro. É preciso fazê-lo ver que leitura não é coisa de louco, que, no interior da biblioteca universal, existem obras complexas, sapienciais, difíceis, mas que a leitura também pode gerar prazer, diversão ou riso.

A questão passa longe de preço ou comércio; quem tem disposição empresta um livro numa biblioteca, ou lê a obra pela internet (as opções de bons livros de domínio público ou livres de copyright são intermináveis), mas é preciso querer.

Prazer na leitura, sem isto, não há medida educacional, não há campanha publicitária que alterará o panorama literário.

Bibliografia:

Câmara Brasileira do Livro
http://www.cbl.org.br/content.php?recid=5828&type=N

De olho na Educação
http://www.deolhonaeducacao.org.br/Comunicacao.aspx?action=5&mID=832

Desemprego Zero
http://www.desempregozero.org.br/artigos/um_estudo_sobre_a_populacao_brasileira_no_seculo_xx_fonte_ibge.php

Domínio Cultural
http://www.dominiocultural.com/ver_coluna.php?id=6207&PHPSESSID=8b602f1930d00d246dd2b14aca7c560c

Farol Comunitário
http://farolcomunitario.blogspot.com/2008/05/imprensa-oficial-publica-pesquisa.html

Microfone: História da Televisão Brasileira
http://www.microfone.jor.br/historiadaTV.htm

Portal Brasil
http://www.portalbrasil.net/brasil_economia.htm

Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/MOBRAL

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Friday, May 09, 2008

Literatura: Arte ou Comércio?


Henry Alfred Bugalho

Esta questão, nem de longe incomum nos meios literários, é por si só enganosa, uma pergunta viciada, isto por duas razões principais: a) não devemos, necessariamente, considerar Arte e Comércio como pólos excludentes; b) não possuímos definições apodícticas sobre o que é Arte, por isto, é complicado saber se determinada produção é ou não Arte se nem ao menos sabemos o que isto significa.

Fomos condicionados a dividirmos e organizarmos o mundo em categorias e sob determinados rótulos. Como se fosse simples realizar esta tarefa, como se não existissem, geralmente, limites não muito definidos, zonas acinzentadas entre o preto e o branco, territórios difusos.

A pergunta proposta exemplifica a complicação que é patinar entre dois conceitos que, por vezes, se mesclam.

O que é Arte?
O que entendemos por Arte já passou por tantas transformações e renovações — conjunto de técnicas, entre os gregos; o que expressa o Belo, para Hegel; um juízo sem conceito, para Kant; o que causa determinadas sensações estéticas nos receptores, e assim por diante — que mal teríamos condições para definir quais delas melhor se aplica ao objeto dito artístico. Podemos dizer que esta incapacidade é o legado, e a maldição, das vanguardas modernistas do século XX. Ao tentar ampliar os limites da Arte, os modernistas eliminaram qualquer possibilidade de se falar sobre Arte.
Por isto, tentaram transferir do observado, i.e. obra de Arte, para o observador a responsabilidade sobre a existência da Arte. Obviamente que isto cria uma série de outros problemas, pois, supondo que jamais existe unanimidade de juízos estéticos, uma obra seria Arte para uns, mas não para outros, ou seja, não resolvemos nada.

O que é Comércio?
Enquanto precisamos recuar diante do conceito de Arte, ou fingirmos que o entendemos sem a necessidade de explicações, definir comércio já é bem mais fácil e inquestionável: o ato de troca de determinado produto, mercadoria, serviço ou valor por outro produto, mercadoria, serviço ou valor, com a finalidade de obter lucro.
O comércio não surge com o capitalismo, mas é radicalizado por ele e pela sociedade industrial. Seria muita ingenuidade nossa pressupor que todos os artistas da Antigüidade criavam altruisticamente, sem a necessidade de sustentar suas famílias, seus lares, pagar suas contas ou dívidas. Aliás, esta é uma tendência generalizada, de idealizar o artista como uma criatura supraterrena, que não come pão, não dorme, e que convive com os demais seres humanos apenas incidentalmente. Este mito foi criado, em parte, pelos próprios artistas, e perpetuado como uma verdade.
O que ocorreu de fato foi apenas uma mudança na conjuntura história. Anteriormente, o artista não precisava vender o resultado de seu trabalho, pelo menos não como o artista de hoje, mas atuava como um vassalo da Igreja ou da aristocracia. Eram remunerados e sustentados por seu senhor e, deste modo, terminavam por vender, mesmo que dissimuladamente, seus serviços a certa classe social.

O Advento do Romance Moderno
No entanto, se acompanharmos o percurso da Literatura Ocidental, constataremos que o surgimento do romance (novel) na Inglaterra anda de braços dados com a dominação mercantilista e com o comércio. Por exemplo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe: o protagonista é um rapaz que abomina o simples pensamento de se tornar um indivíduo de classe média, por isto, decide viajar o mundo como mercador, acumular riquezas, e voltar para sua terra numa nova posição social. O naufrágio e os anos de isolamento numa ilha são apenas um revés para o Robinson Crusoé. Ele é resgatado, mas nem assim desiste de seu intento, retorna ao mar para cumprir sua meta.
O romance é a própria expressão da nova relação entre o homem e o capital, a busca frenética pela aquisição de bens. E Robinson Crusoé foi, por sua vez, um livro boas vendas em seu tempo.
Este novo tipo de romance, que se afastou dos princípios e da temática do romance de cavalaria, era uma literatura voltada para a classe burguesa ascendente. É a este leitor ávido por capital, mas também sequioso por adquirir bens culturais, de modo a se assemelhar à decadente aristocracia, que obras como as de autores ingleses — Defoe, Henry Fielding, Walter Scott, Dickens — , ou na França, de Alexandre Dumas, Balzac, Flaubert, Vitor Hugo, se destinam.
Não nos iludamos, tais autores, não mais sob proteção dum senhor feudal, ou de algum outro tipo de soberano aristocrata, tinham de ganhar seu sustento à base da venda de seu trabalho, literário ou não. A proliferação dos folhetins foi a oportunidade, para muitos, de adquirir fama e fortuna, ou seja, na gênese do romance moderno está vinculada a capitalização e a compreensão do livro enquanto produto.

A Intersecção
Agora, suponhamos que entendamos o que seja Arte e tentemos relacioná-la com o comércio.
Muitos escritores tendem a pensar estes dois conceitos em oposição, ou melhor dizendo, qualitativamente.
O que vende é popular; o popular é simplório; portanto, o que vende é simplório.
Temos um juízo de valor que atribuir qualidade ao produto (cultural) destinado às elites, aos poucos capazes de compreendê-lo. A questão nem chega a ser se um é mercadoria e outro não; ambos, tanto a obra de arte do populacho, quando a da elite são, sem dúvida, mercadorias, posto que são produzidas por instâncias que visam lucro e que possuem um valor de mercado.
Para ser mais claro, o livro possui um preço e uma valoração qualitativa. O preço é constante, mas a qualidade varia de acordo com os exemplares vendidos, quanto maior a vendagem, mais simplória, mais adequada à mente do leitor do populacho é a obra, isto se radicalizássemos esta perspectiva.
Mas logo surgem as inúmeras, incontáveis, exceções, de autores canônicos que, mesmo após séculos, continuam vendendo bem — o Google realizou uma pesquisa recentemente sobre quais eram as obras mais procuradas na internet, a listagem obtida nem de longe coincidia com as listagens de best-sellers veiculadas pela mídia, porém este resultado foi abafado pelas grandes editoras; outro caso é das editoras especializadas em publicação de obras canônicas, como a Penguin Books, que em suas estatísticas apresentam dados assombrosos de autores clássicos que possuem vendagem constante na casa das centenas de milhares de exemplares, muito mais, às vezes, do que autores da moda —, ou de autores contemporâneos reconhecidos pela crítica, como ganhadores de Nobel, ou outros prêmios importantes.
Quer dizer então que as obras de tais autores teriam seu valor qualitativo diminuído por causa das estatísticas de vendas?


Talvez fosse muito mais fácil pensarmos numa dualidade, em dois conjuntos — Literatura e Comércio.
No conjunto Literatura incluiríamos tudo aquilo que pertence ao domínio das Letras, obras canônicas e atuais, boas ou ruins, ficção e não-ficção; no conjunto Comércio teríamos tudo aquilo que pode ser comercializado, desde TVs, geladeiras, canetas e passando por livros.
Nem tudo o que há no conjunto Literatura é comercializável, nem tudo que há no conjunto Comércio é Literatura, porém há uma intersecção nestes conjuntos, uma área onde encontramos obras literárias que possuem potencial mercadológico — canônicas ou não, ficcionais ou não, bem escritas ou não.

Considerações Finais

Parece ser da natureza humana mistificar a realidade, querer pintá-la com cores que não lhe dizem respeito. É esta a impressão que tenho quando se fala em Arte, na sublimidade de Belo, na intocabilidade do artista.
Escrever é um ofício como outro qualquer e o escritor é um profissional como outro qualquer. É óbvio que, como em toda atividade criativa, paira um aura de fascínio sobre a gênese da criação, a inspiração inicial, mas, no fim das contas, o resultado esta em igual relação com o resultado de várias outras ocupações.
Então, tentando responder à mal concebida pergunta inicial: “Literatura: Arte ou Comércio?”
Os dois, ou nenhum, ou apenas um dos dois; no fundo, isto nem faz muita diferença mesmo.

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Tuesday, April 15, 2008

Revolucionários e Reacionários em Literatura



Vire e mexe surge algum escritor com a inovadora de idéia de:

“Tenho de revolucionar a Literatura”.

Antes de tudo, tentemos compreender do que se trata esta ânsia por mudanças e porque a tradição incomoda tanto.
A tradição é uma convenção, geralmente arbitrária, que determina quais foram os grandes expoentes de determinada área de atuação, e em quais épocas. Ela se constrói ao vislumbrar o passado, constatando em como aquelas produções se relacionaram com o mundo, e como influenciaram seus contemporâneos.
Os grandes mestres, ou grandes obras, dialogam com suas próprias épocas, abrindo sentido para seus receptores, mas, ao mesmo tempo, transcendendo seu tempo e atingindo também a um receptor póstero.
Machado de Assis percebe bem esta relação, quando afirma que é o universal que permite uma obra literária ultrapassar si mesma e ao próprio autor, dotando-a de longevidade, dum sentido perene.
A tradição é a moldura da produção cultural, a linha-mestra do que, em tese, representou o ápice dum período.
O problema da tradição é quando, ao invés de referência ou inspiração, ela se torna uma imposição às gerações vindouras, que têm de se pautar por ela, repeti-la, imitá-la.
O clamor por “revolução”, ou “renovação” surge desta asfixia da tradição, imposta, não pela tradição, mas pelos receptores de Arte, ou por seus representantes.

A Revolução como libertação

Neste sentido, os revolucionários são aquelas pessoas que precisam se libertar das amarras do que já está gasto, do que já caiu em desuso. É através do abandono ao convencional que eles se nutrem, para poder dar a gênese ao novo.
Contudo, este tipo de revolução decorre duma negação positiva do passado, um repúdio às normas conhecidas. O revolucionário não destrói aquilo que não conhece, ele se desapega do que o oprimia. É uma luta contra o conhecido, contra o excessivamente conhecido.

A Revolução como ignorância

Por outro lado, há uma outra estirpe de revolucionários, que renegam o passado apenas pelo fato de ser passado, sem compreensão, sem aquela asfixia essencial.
Desconhecem a tradição — preguiça, ou posicionamento voluntário —, e se opõem a ela cegamente. Este tipo de revolucionário é o mesmo que, vez ou outra, é pego macaqueando, inconscientemente, a tradição, pois, em seu desconhecimento, não sabe a que se opõe. É o herói que luta contra a própria sombra, por não saber quem são os seus inimigos.

A Revolução como processo histórico


Apesar de o anseio por mudanças ser individual, e brotar de indivíduos, a necessidade de revolução é histórica.
Heidegger aponta com propriedade a complexidade da formação de sentidos, quando uma camada de sentido se sobrepõe às demais, afastando-nos dum conhecimento originário do mundo.
A tradição serve como uma espécie de filtro para nossa compreensão de Arte; todos nossos conceitos se fundam no já-feito, e este já-feito molda o que está-para-vir.
Mas, em certos momentos históricos, em certas conjunturas, novas relações se estabelecem, as quais, se não invalidam totalmente, pelo menos comprometem as bases dos saberes anteriores. Nestes momentos de cisão, o que vale para uma época deixa de valer para a seguinte, e a manutenção da tradição torna-se apenas um hábito decadente.
É neste instante que os indivíduos, coletivamente, mas através de suas próprias expressões individuais, iniciam o refluxo e estabelecem as novas bases, que, por sua vez, tornar-se-ão a tradição no futuro.
Uma revolução dum só homem é um “golpe de Estado”. A verdadeira revolução só ocorre em conjunto, quando o passado não mais basta, não supre mais as necessidades, não mais responde satisfatoriamente as questões.

O Reacionário

Existem pelo menos dois tipos de reacionários: o que teme a mudança e reage à ela; e o que tenta compreender o passado, para poder compreender a mudança.
O primeiro tipo é avesso a qualquer transformação. É o idólatra do passado, dos grandes mestres, incapaz de se voltar para o seu tempo e identificar as marcas da transformação.
O segundo tipo é o que se sujeita ao passado, aprende com ele, descobre o que há de melhor da tradição, dialoga com os mestres pretéritos, e, quando chega a hora propícia, despe-se de seu reacionarismo e aproveita seu conhecimento para ajudá-lo em sua metamorfose. Este reacionário entende que ação-reação só faz sentido nesta dicotomia, que, se estes pólos forem suprimidos, qualquer movimento deixa de existir, estaríamos abandonados a uma insossa neutralidade.
Este tipo de reacionário é quem prepara as bases sólidas para uma verdadeira transformação, pois tem a clareza do que deve ser abandonado, do que pode ser mantido, e do que deve ser renovado.


A Revolução: um grande clichê

No fundo, a própria luta forçada para se estar na linha de frente, para ser a vanguarda duma geração revolucionária, não passa dum grande clichê, dum baita lugar-comum.
Este revolucionário, não raro um artista sem obra, um procrastinador com “ótimas” idéias, mas nenhuma realização concreta, acaba sendo o arauto da repetição, do tradicional. Pois todas as épocas possuem seus revolucionários de mentirinha, que surgiram prometendo grandes mudanças, mas que desapareceram, dragados pela tradição contra qual combatiam.
Nenhuma injustiça, possivelmente, apenas um processo de seleção natural, não muito diferente da biológica.

Conclusão

Quase todo escritor vê em si mesmo o germe da mudança, o ponto de ruptura duma época para outra. Há um prazer em se imaginar num limiar, onde as relações pretéritas serão abandonadas e onde ele, idealizar com grandes reformas, estará na aurora de novos tempos.
Alguns poucos realmente acertam; alguns são, de fato, tão geniais quanto se imaginam, capazes de concretizar, ou acompanhar, as mudanças que vislumbraram.
Mas a maioria está absorta por um delírio de auto-emulação, revolucionários apenas da boca pra fora.
E a tradição, em sua implacável arbitrariedade, se lembrará apenas dos primeiros.

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Sunday, March 09, 2008

A teoria do Humor

Henry Alfred Bugalho e Volmar Camargo Junior


"O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é", esta sentença de Millôr Fernandes, inspirada numa errônea idéia aristotélica — hoje se sabe que macacos, cães e até ratos também riem — escancara o caráter social do riso. A risada é um dos comportamentos humanos de regulação da interação social, facilitando a aceitação no interior duma comunidade.

Esse texto não tem a pretensão de ser um aprofundamento teórico sobre o assunto. A intenção aqui é meramente abordar o humor por um viés analítico, tomando como referência para um (possível) estudo de caso.

A Enciclopédia Encarta diz que o humor, compreendido em seu sentido amplo, é o texto informal cujo objetivo é divertir ou causar o riso. O humor penetra na ilusão e na imaginação, explorando as possibilidades de situações improváveis e de combinações de idéias, mas difere delas por estar preocupado somente com os aspectos cômicos destas situações imaginárias. Como são muito diversos os textos humorísticos, há também diversas teorias que podem explicá-los. Citemos algumas delas.

Aristóteles é, possivelmente, o primeiro teórico da narrativa que se tem notícia no Ocidente. Boa parte de seu esforço, pelo menos na obra "Poética", é de entender a arquitetura da tragédia, que, para ele, é uma forma de poesia superior às demais — à comédia e à epopéia —, por isto, ele aborda apenas periférica e negligentemente as características do nosso objeto, i.e., a comicidade da comédia.
Para o Filósofo, o que diferencia a comédia da tragédia e da epopéia é o objeto imitado: na epopéia, são retratados homens melhores do que nós, como os heróis míticos de Homero; na tragédia, são retratados homens semelhantes a nós, oprimidos pela vontade dos deuses, sujeitos às desventuras do destino; por fim, na comédia, são retratados homens inferiores, cujos baixos instintos, ao serem expostos ao ridículo, causam riso.

Esta perspectiva coincide em muitos aspectos com a Teoria da Superioridade: o riso é provocado pelas pessoas que apresentam algum defeito, se encontram em posição de desvantagem ou sofrem algum pequeno acidente. Segundo essa teoria, o humor advém de alguma forma de escárnio. O autor observa o objeto retratado de um ponto de vista superior, e seu público compartilha dessa visão. Um dos pontos mais importantes dessa tese é trazido por Alexander Bain: "não é necessário que uma pessoa seja ridicularizada. Uma idéia, instituição política ou qualquer coisa que exija dignidade e respeito também pode ser exposta ao ridículo". Outro ponto importante é encontrado na tese de Henri Bergson, cujo ideal são a adaptabilidade e a elasticidade – caracteres de seu terceiro principal conceito: a Élan Vital. O personagem cômico típico, segundo Bergson, contraria esse ideal. Nada mais é que um indivíduo excêntrico que se recusa a adaptar-se à realidade. A persistência em hábitos imutáveis, independentemente das circunstâncias, torna cômicos os personagens e as situações vividas por eles.

A Teoria da Incoerência assevera que o essencial para o humor é a mistura de duas idéias que são, conforme o que se sente, disparatadas. De acordo com tal teoria pode-se dizer que o humor consiste no encontro do inadequado dentro do apropriado. Segundo parte de seus defensores, o prazer da interpretação do texto cômico está em localizar os pontos de contato entre as idéias incongruentes, onde divergem e onde estão mescladas. Outros, alegam que essa incompatibilidade não se encontra apenas no âmbito textual, mas principalmente em como / por quem esse texto será recebido: vai do textual para o cultural. Isso explicaria por que uma dada anedota atingiria seu objetivo cômico em um dado meio e em outros, não.

A Teoria do Alívio alega que o humor questiona as exigências sociais convencionais. Existem barreiras sociais e ideológicas que censuram, por consenso ou por imposição, certos temas. Abordar esses temas, utilizando os recursos textuais humorísticos, é um modo de burlar essas barreiras. O humor resultante é causador de grande alívio, devido à fuga momentânea de sentimentos reprimidos. Essa teoria, reforçada sobretudo pelas descobertas de Freud no campo da psicanálise, assenta-se antes no prazer individual experimentado pelo receptor do texto cômico. Entretanto, situando-se mais na ruptura com as barreiras psico-sociais, é insuficiente para explicar o humor existente, por exemplo, em textos nonsense e em jogos de palavras.

Estas últimas duas teorias sugerem que não basta uma análise lingüística do texto cômico para compreender sua comicidade. Mikhail Bakhtin propõe uma investigação do discurso, a interação entre o social e o literário. Ao se debruçar sobre "Gargântua e Pantagruel", um dos ícones do realismo grotesco escrito por François Rabelais, Bakhtin percebeu que a obra cômica está situada no limiar entre o proibido e o permitido, no umbral do profano e do sagrado, daquilo reservado à vida privada e o que pode ser exposto na praça pública.

É neste trabalho que ele cunha o conceito de carnavalização, quando o mundo às avessas invade a vida cotidiana. Durante as festas populares na Idade Média e Renascença, ao homem do povo é concedida a liberdade à licenciosidade. Coroações satíricas, linguagem vulgar, sensualidade, ídolos, tudo isto é permitido nestes dias de festa. Através do carnaval, a ordem do mundo desmorona, para se renovar ao fim das festas. Deste modo, o riso estaria vinculado à substituição da ordem pelo caos.

Assim como qualquer outro, o objeto textual que se pretende cômico é apelativo ao conhecimento de mundo de um determinado público - e em sua composição está implícita a adesão do público a que se destina ao seu "universo" de significados. Por outro lado, os caracteres que provocam o riso não são de ordem lingüística. Exatamente por isso, não há uma teoria universal que possa dar conta de todas as possibilidades humorísticas dos textos cômicos porque essas possibilidades são inúmeras. Desse modo, podemos entender que o cômico não é simplesmente depreendido, como um aspecto imanente do texto; ele dá-se como um efeito da interpretação do texto feita pelo leitor. Por isso, devemos ter em mente que, antes de "conter" humor, um texto dessa natureza "produz" humor.

Publicado originalmente em SAMIZDAT
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