Tuesday, June 10, 2008

Por que escrevo?

Henry Alfred Bugalho

Hoje em dia, a última moda é criticar a aquisição de “capital cultural”.

Antes, o alvo havia sido o capital puro e simples — grana, bufunfa, prata, money. Uma legião de esquerdistas, de cunho marxista-leninista, se proliferou por países subdesenvolvidos, execrando os males do capitalismo, a exploração da mais-valia e a sociedade de classes.
A falência do socialismo foi um balde de água fria para esta turma. Mas, recentemente, em vários artigos que tenho lido pela internet, algo semelhante tem surgido, mas agora criticando o hábito — extremamente burguês, como negar? — de se escrever livros. “Os autores só escrevem para adquirir capital cultural”, eles dizem.
Tomei ciência deste conceito pela primeira vez através da boca duma amiga americana, mestranda de Ciências Sociais, que me explicou o que Bourdieu entendia por isto. A grosso modo, “capital social” é o conhecimento, ou experiência ou relações que alguém possui de modo a permiti-lo se destacar daqueles que não possuem a mesma formação. Este capital se divide em três instâncias: 1 – inerente, aquele que nasce com um indivíduo, ou é decorrente da formação familiar; 2 – objetificado, que é aquilo que pode ser possuído, enquanto propriedade, como uma obra de arte, um livro raro, ou algo de grande valor cultural; e 3 – institucionalizado, que decorre da legitimação de instituições culturais, como universidades, premiações, títulos e demais honrarias.
Até onde percebo, o escritor se enquadraria nestas três categorias, pois a escrita depende de algo inerente, o idioma no qual se escreve, o talento para organizar sentenças, a capacidade de observação do mundo e sua reprodução através da literatura; depende também da objetificação do livro, algo físico, palpável, que pode ser comercializado, manuseado, que traz na capa o nome do autor, que o institui como criador e dono de seu conteúdo; por fim, também possui um caráter institucional, pois o reconhecimento da Academia é uma das grandes medidas de canonização dum autor, a adoção de suas obras por uma Universidade, ou a premiação em algum importante concurso literário, ou o recebimento de alguma titulação de doutor honoris causa.
A aquisição de capital cultural faz parte do ofício da escrita, mas é isto que os autores buscam ao escreverem um livro?

Sem dúvida, há uma fetichização do livro. Aquela coisa, composta de páginas, caracteres, signos, sentido, é um universo à parte do nosso mundo cotidiano. Apesar de a escrita ser uma espécie de instrumento de comunicação — escrevemos cartas, e-mails, cartazes, jornais, revistas para comunicarmos algo a alguém, sendo que este alguém pode ser um receptor direto, alguém que conhecemos, ou um receptor indireto, uma massa desconhecida —, o livro ultrapassa esta função, ainda mais se nos restringirmos aos limites da ficção.
Um romance ou uma coleção de contos transmite uma mensagem, comunica um sentido, mas vai além, visa algo que ultrapassa a mera comunicação.
O que este “além” significa é motivo de debates acalorados através dos séculos; uns dizem ser a transmissão do Belo; outros, o estímulo de sensações e sentimentos; outros, a formação de senso crítico ou a crítica da sociedade; outros, entretenimento. As hipóteses e propostas são infindas, talvez tão numerosas quanto os volumes de livros que já foram escritos na História da Humanidade.
Eu, enquanto escritor, não me recordo de, em momento algum, eu me sentar diante do computador para escrever um conto ou romance e ser assolado pelo pensamento: “que beleza, vou adquirir mais um pouco de capital cultural!”
Acho que a primeira intenção dum autor, a mais genuína, a mais entranhada, é tentar recriar as mesmas impressões que ele teve ao ler um bom livro. Talvez o que se passe na mente, talvez até de maneira inconsciente, dos escritores é causar nos leitores aquela sensação: “eu queria ter escrito este livro”.
Isto não significa que os autores tentam imitar formal ou estilisticamente seus autores favoritos, mas sim que, no interior de seus gostos e predileções, eles gostariam de causar no leitor, através de palavras, o deslumbramento que um dia tiveram através da leitura.
A aquisição de capital cultural está atrelada ao ofício literário do mesmo modo que a aquisição de capital está vinculada ao trabalho. Se não é vergonhoso ser remunerado pela execução dum trabalho, então por que o reconhecimento através da escrita seria?

Mas não é isto que motiva um escritor, pelo menos, não deveria ser.

Se alguém me perguntasse: “por que você escreve?”, a única resposta que eu poderia dar, a mais sincera e verdadeira, é: “porque gosto; porque, acima de tudo, eu me divirto muito”.
E não há dinheiro ou reconhecimento capaz de superar esta sensação.

Publicado originalmente em SAMIZDAT

Tuesday, June 03, 2008

O Medo do Livro

Quando eu era adolescente, nas férias, eu sempre viajava acompanhado por pelo menos um livro.
E toda vez que alguém me encontrava, sentado na varanda da casa da minha avó, no interior do Paraná, ou na praia, neste mesmo estado, lendo, a pergunta inevitável era feita:
— Por que você está lendo?
— Porque gosto... — eu respondia.
— Mas você é louco?

Eu não compreendia, à época, a relação entre gostar de ler e ser considerado um maluco, pois, para mim, o prazer da leitura era tão natural quanto o de assistir TV, jogar videogame ou ir ao cinema; um não excluía o outro.
Mas descobri que o brasileiro foi ensinado a temer o livro e este fenômeno está enraizado num triste contexto histórico-social.

Em 1950, mais de 50% da população brasileira era analfabeta, ou seja, dos 50 milhões de habitantes, mais de metade não conseguiria ler um livro se o tivesse às mãos.
Foi exatamente neste mesmo ano que o primeiro canal de TV foi inaugurado no país.
Dez anos depois, o analfabetismo havia caído 10%, enquanto o número de televisores havia aumentado 200 mil vezes.

Hoje, a televisão está presente em 88% dos lares brasileiros, sendo que 98% dos brasileiros assiste a TV pelo menos uma vez por semana; por outro lado, os índices de alfabetização estão na casa de 88%, incluindo os analfabetos funcionais — capazes de níveis básicos de escrita, mas sem grandes habilidades interpretativas.

Enquanto a França, a Inglaterra e os Estados Unidos haviam criado um gigantesco público leitores, acoplado a programas educacionais de qualidade, durante os séculos XIX e XX, a leitura no Brasil sempre foi precária, até o momento em que teve de dividir espaço com a desleal concorrência da TV.

Um meio de entretenimento instantâneo, atraente e novo disputou — e venceu — o obsoleto e intrincado universo dos livros. Um indivíduo com sérias limitações financeiras não deveria ter dúvida sobre como gastar seu miserável salário: 200 reais numa TV, ou o mesmo valor para uma estante com alguns poucos livros? Adquirir um aparelho que proporciona diversão 24 horas ao dia, por tempo indeterminado, para toda a família, ou comprar alguns volumes finitos (o ponto final é o fim) de prazer solitário?

Uma população (semi-)analfabeta, um mercado literário que força aos leitores um preço surreal, e o mito criado ao redor do livro sepultaram — talvez para sempre — um relacionamento íntimo entre o brasileiro e o livro.

A Literatura nunca foi vista como uma forma de entretenimento tão ou mais agradável do que as outras — TV, cinema, música, internet. Ao livro é resguardado o rótulo de “repositório de saber”, o que, nas entrelinhas, significa: “que chatice!”

O modo como as escolas apresentam a Literatura também não é dos mais agradáveis. Apesar de todos seus méritos literários, forçar alunos de 14 ou 15 anos a ler Guimarães Rosa ou Euclides da Cunha é criar uma aversão ainda maior ao livro do que a que eles já traziam desde casa. Um lar sem livros é uma casa sem leitores, mas uma escola que seleciona os livros errados está criando verdadeiros inimigos da Literatura. Eu bem sei quantos anos se passaram até eu me reconciliar com “Sagarana”.

Parece ser este o grande tabu da Literatura no Brasil — ser popular, ser entretenimento, ser agradável. Qualquer autor que porventura caia nas graças do público, deste pobre público que mal consegue comprar dois livros ao ano, é o alvo da execração crítica e moral. Vender e divertir é um convite a uma temporada no inferno literário. No Brasil, o bom autor que se preza abomina cifras, enredos lineares, personagens planas (e, por isto, facilmente assimiladas pelo “populacho”) e, o mais surpreendente, parágrafos. O bom autor brasileiro vomita tudo, sem interrupção, por 500 páginas. E se o leitor não entender, o problema é dele!
É um ciclo que se alimenta.

Numa pesquisa recente foi apresentada a estatística de que 45% dos brasileiros não gosta de ler.
Muita gente pensa — inclusive grandes formadores de opinião — que bastaria baixar o preço dos livros para se conquistar mais leitores. Isto é simplesmente ridículo. Um brasileiro paga 25 reais para ir a um jogo de futebol, mas não paga 30 reais para adquirir um livro. O que existe é uma hierarquia de prioridades, do que proporciona prazer ao que causa repulsa.

A única medida que concebo para reverter este cenário — se é que isto seja possível — é modificar a relação entre o brasileiro e o livro. É preciso fazê-lo ver que leitura não é coisa de louco, que, no interior da biblioteca universal, existem obras complexas, sapienciais, difíceis, mas que a leitura também pode gerar prazer, diversão ou riso.

A questão passa longe de preço ou comércio; quem tem disposição empresta um livro numa biblioteca, ou lê a obra pela internet (as opções de bons livros de domínio público ou livres de copyright são intermináveis), mas é preciso querer.

Prazer na leitura, sem isto, não há medida educacional, não há campanha publicitária que alterará o panorama literário.

Bibliografia:

Câmara Brasileira do Livro
http://www.cbl.org.br/content.php?recid=5828&type=N

De olho na Educação
http://www.deolhonaeducacao.org.br/Comunicacao.aspx?action=5&mID=832

Desemprego Zero
http://www.desempregozero.org.br/artigos/um_estudo_sobre_a_populacao_brasileira_no_seculo_xx_fonte_ibge.php

Domínio Cultural
http://www.dominiocultural.com/ver_coluna.php?id=6207&PHPSESSID=8b602f1930d00d246dd2b14aca7c560c

Farol Comunitário
http://farolcomunitario.blogspot.com/2008/05/imprensa-oficial-publica-pesquisa.html

Microfone: História da Televisão Brasileira
http://www.microfone.jor.br/historiadaTV.htm

Portal Brasil
http://www.portalbrasil.net/brasil_economia.htm

Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/MOBRAL

Publicado originalmente em SAMIZDAT
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