Thursday, October 16, 2014

Revista SAMIZDAT na Feira do Livro de Frankfurt 2014


Na semana passada, eu estava na Feira do Livro de Frankfurt, representando a Revista SAMIZDAT, da qual sou editor.
Agora que estou de volta, acabei de preparar um vídeo mostrando um pouco do que vi por lá.
A feira é bastante impressionante e é muito difícil ter a real dimensão de sua grandeza, com vários milhares de profissionais do mercado editorial fechando negócios nos estandes, no Agents Center e por todos os lados.
Ainda pretendo escrever um artigo mais completo sobre isto, então aguardem.
Aproveite para assinar também o meu canal no youtube, no qual falo de viagens, fotografia e outros assuntos que me der na telha...

https://www.youtube.com/channel/UCcmBUpQA7VnCpqVE3DBC5Og?sub_confirmation=1

http://youtu.be/kbxf0GUd-7o

Tuesday, August 19, 2014

22 regras da Pixar para uma narrativa fenomenal



Por Emma Coats (ex-funcionária da Pixar)
Trad.: Henry Alfred Bugalho

1: Você admira um personagem mais por suas tentativas do que por seus sucessos.

2: Você precisa ter em mente o que é interessante para você como público, não o que é divertido fazer como escritor. Podem ser coisas bastante diferentes.

3: Investir num tema é importante, mas você não verá sobre o que sua história realmente é até o final dela. Agora reescreva.

4: Era uma vez ___. Todos os dias , ___. Um dia ___. Por causa disto, ___. Por causa disto, ___. Até que finalmente ___.

5: Simplifique. Mantenha o foco. Combine personagens. Salte por sobre desvios. Você sentirá que está perdendo material valioso, mas isto o libertará.

6: No que o seu personagem é bom, com que se sente confortável? Jogue contra ele o extremo oposto. Desafie-os. Como eles lidam com isto?

7: Faça o final antes de conceber o começo. É sério. Os finais são difíceis, adiante o seu.

8: Conclua a sua história, deixe-a partir mesmo se não estiver perfeita. Num mundo ideal, você consegue os dois, mas siga adiante. Faça melhor da próxima vez.

9: Quando você estiver encalhado, faça uma lista do que NÃO DEVERIA acontecer em seguida. Muitas vezes, o material para desencalhá-lo vai aparecer.

10: Separe as histórias que você gosta. O que você gosta nelas é uma parte de si; você tem de reconhecer isto antes de poder usá-las.

11: Pô-la no papel permite-lhe começar a arrumá-la. Se ela ficar em sua cabeça, uma ideia perfeita, você nunca a compartilhará com ninguém.

12: Desconte a primeira coisa que lhe vier à mente. E a segunda, terceira, quarta, quinta – tire o óbvio do caminho. Surpreenda-se.

13: Dê opiniões a seus personagens. Passivo/maleável pode parecer agradável enquanto você escreve, mas é um veneno para o público.

14: Por que você precisa contar ESTA história? Qual é a crença queimando dentro de você da qual sua história se alimenta? Esta é a alma dela.

15: Se você fosse um personagem, nesta situação, como você se sentiria? Honestidade dá credibilidade para situações inacreditáveis.

16: Quais são os riscos?  Dê razão para torcermos pelo personagem. O que acontece se eles não forem bem-sucedidos? Ponha as probabilidades contra eles.

17: Nenhum trabalho é desperdiçado. Se não estiver dando certo, desista e siga adiante - ele voltará e será útil um dia.

18: Você tem de conhecer a si próprio: a diferença entre fazer o seu melhor e exagerar. A história é um teste, não é refinamento.

19: Coincidências para porem personagens em problemas são ótimas; coincidências para os tirarem delas é trapaça.

20: Exercício: pegue os elementos constitutivos de um filme que você não gosta. Como você os reorganizaria para que se torne um filme que você goste?

21: Você tem de se identificar com sua situação/personagem, você não pode apenas escrever "legal". O que faria com que VOCÊ agisse daquele jeito?

22: Qual é a essência de sua história? A narrativa mais econômica para ela? Se souber isto, pode construir a partir daí.

Sunday, August 17, 2014

A Ditadura da Gramática

 
Apesar de ser um artigo sobre a gramática da língua inglesa, o começo é bastante esclarecedor sobre a gramática em geral.

Por Steven Pinker, autor de "The Sense of Style: the Thinking Person's Guide to Writing in the 21st Century" (tradução livre: Henry Bugalho)

"Entre os muitos desafios da escrita está o lidar com as regras do uso correto (...). Supostamente, um escritor tem de escolher entre duas abordagens radicalmente diferentes para estas regras. Os 'prescricionistas' prescrevem como a linguagem deveria ser usada. Eles defendem padrões de excelência e um respeito pelo melhor da nossa civilização e são um baluarte contra o relativismo, o populismo vulgar e a imbecilização da cultura letrada. Descritivistas descrevem como a linguagem é usada de fato. Eles acreditam que as regras do uso correto nada mais são do que um cumprimento secreto da classe dominante, designado para manter as massas em seu lugar. A linguagem é um produto orgânico da criatividade humana, dizem os descritivistas, e as pessoas deveriam ser permitidas a escrever do jeito que elas quiserem.

Esta é uma dicotomia contagiante, mas falsa. Qualquer um que tenha lido um trabalho de um aluno inepto, uma má tradução do Google, ou uma entrevista com George W Bush pode avaliar que os padrões de uso são desejáveis em muitos territórios de comunicação. Eles podem lubrificar a compreensão, reduzir mal-entendidos, fornecer uma plataforma estável para o desenvolvimento de estilo e graciosidade e indicar que um escritor se dedicou ao elaborar um trecho.

Mas isto não quer dizer que cada implicância, que cada elemento de folclore gramatical, ou cada lição que vagamente nos recordamos da aula da nossa professora Carrancuda merece ser mantida. Muitas regras prescritivas se originaram por razões despropositadas e têm sido desprezadas pelos melhores escritores por séculos.

Como você pode distinguir as preocupações legítimas de um escritor cuidadoso de folclore e superstições? Estas são as perguntas a se fazer. (...) Escritores cuidadosos que inadvertidamente ignoraram a regra concordam, quando a violação é indicada, que houve algum erro? A regra tem sido respeitada pelos melhores escritores pretéritos? É respeitada por escritores cuidadosos hoje? Há um consenso entre escritores com discernimento que isto transmite uma interessante distinção semântica? E são violações da regra produtos óbvios de se ouvir mal, de leitura descuidada, ou uma tentativa fajuta de soar pomposo?

Em contrapartida, uma regra deve ser rejeitada se a resposta para qualquer uma das seguintes questões for "sim". A regra é fundada em alguma teoria bizantina, tal como que o inglês (ou o português) deveria imitar o latim, ou que o sentido original da palavra é o único correto? (...) Ela se originou a partir da implicância de um especialista auto-ungido? Tem sido rotinariamente desprezada por grandes escritores? É fundada num diagnóstico incorreto de um problema legítimo, como declarar que uma construção que às vezes é ambígua é sempre não-gramatical? As tentativas para consertar a frase para que ela obedeça a regra apenas faz com que ela fique mais desengonçada e menos compreensível?

Finalmente, a regra putativa confunde gramática com formalidade? Cada escritor domina uma gama de estilos que são apropriados para diferentes épocas e locais. Um estilo formal que seja apropriado para uma inscrição num memorial do genocídio diferirá de um estilo casual apropriado para um e-mail para um amigo íntimo. Usar um estilo informal quando um estilo formal é requisitado resulta numa escrita que parece ser leve, conversasional, casual, irreverente. Usar um estilo formal quando um estilo informal é requisitado resulta numa escrita que pode parecer constipada, pomposa, afetada, soberba. Ambos os tipos de descompasso são erros. Muitos guias prescritivos se esquecem desta distinção e confundem estilo informal com gramática incorreta.

O modo mais fácil para distinguir uma regra legítima de uso de um conto-da-carochinha é incrivelmente simples: pesquise. Consulte um guia moderno de uso ou um dicionário com observações de uso. Muitas pessoas, particularmente as mais obstinadas, têm a impressão que qualquer mito sobre o uso já solto neste mundo por algum purista autoproclamado será endorsado por algum importante dicionário ou manual. Na verdade, estas obras de referência, com sua cuidadosa atenção à História, literatura e uso atual, são as demolidoras mais fervorosas dos absurdos gramaticais. (Isto é menos verdadeiro para guias de estilo escritos por jornais e sociedades profissionais, e manuais escritos por amadores, como críticos e jornalistas, que tendem a reproduzir irrefletidamente o folclore de guias anteriores.)

http://www.theguardian.com/books/2014/aug/15/steven-pinker-10-grammar-rules-break

Monday, August 04, 2014

O Fantasma da Promessa



Foi uma reportagem do El País que me apresentou a Marina Keegan, uma escritora americana que morreu aos 23 anos. Era considerada uma promessa, "brilhante" segundo seus professores de Escrita Criativa em Yale.

Procurei o livro dela e dei uma folheada. Há um frescor inusitado para alguém que estuda para ser escritora. Tenho lido uma infinidade de contos produzidos nestes cursos, que são quase um pré-requisito para qualquer americano com pretensão a literato; todos se parecem, o mesmo tom, os mesmos temas, a aversão extrema à voz passiva, o uso formulaico de advérbios e adjetivos para evocar "todos os cinco sentidos". Contos longos e tediosos que se prolongam por uma vintena de páginas. Contos para tentarem publicar em The New Yorker ou na Paris Review.

É certo que se pode ensinar a escrever, mas pode-se ensinar alguém a ser escritor?
Tenho as minhas dúvidas.

Corri os olhos pelos contos e crônicas de Keegan, mas não li nenhum integralmente. Interessava-me mais a promessa da escritora que ela não se tornou do que a escritora que de fato ela era. Interessava-me mais a sua breve carreira literária interrompida pela tragédia. Interessava-me o aristotelismo do que poderia ter sido ao invés do que foi.
Pois eu também já fui uma promessa aos vinte e um anos quando escrevi meu primeiro romance e passei a frequentar os círculos literários curitibanos.
Era um rapazola quase concluindo a faculdade embrenhando-me entre os ilustres nomes desconhecidos da Academia Paranaense de Letras, ou com as elegantes senhoras do Centro Paranense Feminino de Cultura. Eu estava lá para ver e ser visto, para ser descoberto, para constatar positiva ou negativamente se havia algum espaço para mim.
No prólogo do meu primeiro livro, a atual presidente da Academia escreveu "o autor, que se prenuncia como uma promessa, trabalha com desenvoltura os múltiplos acontecimentos que afligem homens e mulhres o transcorrer de suas existências", o que me envaidecia e me assustava. Promessa de quê? E como se cumpre uma promessa?

Tive medo. Principalmente, medo de fracassar, de ser uma das várias promessas feitas apenas da boca para fora.
Eu tinha quase a mesma idade de Keegan ao morrer e estava longe de ser um escritor competente. Talvez fosse somente isto, "uma promessa", ou melhor, "o prenúncio de uma promessa", que nem promessa ainda era.
Treze anos se passaram desde então e várias vezes me perguntei: se eu morresse hoje, o que seria da minha obra literária?
É uma indagação tola, reconheço, pois após morrermos não há nada, somente o fim.
O fim das promessas e das realizações, dos sonhos sonhados e dos realizados, do que é e também do que seria.
É triste ser uma promessa, mas é mais triste ser uma eterna promessa.

Até onde ela iria? Quão boa poderia ter se tornado? Qual seria sua obra-prima?
Estas dolorosas perguntas permanecerão para sempre sem resposta.

Tuesday, July 08, 2014

Aprendendo a ouvir críticas (negativas)



Adoramos receber elogios. Todos nós, sem exceção.

Talvez seja por isto que a maioria dos escritores envia seus livros recém-concluídos para parentes e amigos, pois sabe, internamente, que deles receberão comentários positivos.
São as migalhas para alimentar a nossa autoestima.

No entanto, qualquer artista sério terá de encarar, em algum momento da sua carreira, os ataques. Não existe unanimidade; nenhum livro é bom para todos, aliás, nenhum livro é ruim para todos também.

Por mais que você receba centenas de elogios, assim que ouvir a primeira crítica negativa, você só conseguirá pensar nela, em como rebatê-la, em argumentar, xingando mentalmente quem o criticou.
O negativo tem um impacto tremendo, ofuscando todo o resto. Justamente por isto que é preciso realizar um esforço de compreender a origem da crítica e como você pode se beneficiar disto.

Assim que ouvir uma crítica negativa, repasse para si a seguinte lista:

1 - para criticar o meu trabalho, esta pessoa teve de conhecer a minha obra. Há milhões de livros para serem lidos, por que ela escolheu justamente o meu?

2 - ninguém tem obrigação de elaborar uma crítica negativa. Muitas pessoas devem ler o que você escreve e não gostar. O que a motivou a dedicar o tempo dela para criticá-lo?
Isto quer dizer que, de algum modo, você a afetou, ao ponto de ela ter de expressar isto.

3 - posso extrair algo de bom desta crítica?
Nem toda crítica é simplesmente destrutiva. Às vezes, o leitor é vago, sem explicitar exatamente o que o desagradou, porém, alguns são bastante específicos, indicando detalhes que realmente poderiam ser melhorados.
Este tipo de leitor crítico é bastante valioso para um escritor.

4 - é uma crítica maldosa, realizada apenas para magoar o escritor?
Se este for o caso, resista à tentação de responder ou retrucar. Mande o leitor se foder em seus pensamentos.
Isto pode ser reconfortante.

Críticas são inevitáveis, porém podem ser, ocasionalmente, o melhor termômetro de que você está sendo lido.
Os que rastejam raramente são percebidos. Os que voam é que costumam ser os alvos.

Thursday, April 24, 2014

Pesquisar para um livro - do superficial ao mais profundo


Vários livros prescindem de pesquisa. Se você for escrever uma autobiografia, ou memórias suas de um determinado período, tal como fizeram Proust, Bukowski, Henry Miller ou Hemingway, talvez você só precise recorrer à própria memória, ou a de amigos e parentes.

No entanto, se você pretender escrever qualquer tipo de obra com exija um conhecimento específico, romances históricos ou obras ambientadas em outras cidades ou países, é muito provável que você tenha de fazer pelo menos uma pesquisa superficial.

Pesquisar é uma etapa fascinante da escrita de um livro, quando você descobrirá coisas incríveis que jamais imaginou, mas também pode se tornar um inferno em sua vida, obrigando-o a revisar incontáveis vezes certos trechos ou, às vezes, cortá-los totalmente.

Vejamos agora três tipos básicos de pesquisa.

Informações gerais

Isto é o essencial para você não escrever nenhuma besteira absurda. Por exemplo, você não cometerá a gafe de fazer com que personagens europeus utilizem a moeda euro antes de 1999. Portanto, na França se usaria francos; na Espanha, pesetas; na Itália, a lira; na Alemanha, o marco, e assim por diante.
Mesmo assim, também não seja tão confiante, pois, assim como no Brasil, as moedas ao redor do mundo também mudavam de tempos em tempos. Não se pode esperar que a mesma unidade monetária seja a mesma em 1920 e no século XV.
E isto vale para qualquer outro aspecto superficial de uma história, como capitais de países, idiomas falados, eventos históricos relevantes, nomes próprios comuns da região, etc.

Fracassar numa pesquisa superficial é correr o risco de ser chamado de ignorante por seus leitores, pois é o tipo de conhecimento facilmente identificável, ou que pode ser descoberto através uma simples busca na internet.
Geralmente, não é o tipo de informação que você precise de antemão, mas que pode ser pesquisada até durante a revisão do livro, somente para certificar-se de não ter escrito algo absurdo.

Pesquisa detalhada

Este é o tipo de investigação um pouco mais dedicada, que talvez exija algumas semanas ou meses do escritor. Vale para situações históricas mais específicas, nomes de personalidades políticas, das artes ou das ciências, para vestimentas típicas de regiões ou épocas, costumes e hábitos, práticas religiosas mais exóticas.

Pesquisas desta ordem revelarão aspectos que não são de conhecimento geral e apenas leitores mais atentos ou que se interessam pela área poderão reconhecer como sendo verdadeiros ou falsos.
Via de regra, uma informação equivocada neste tipo de pesquisa não compromete a fruição da obra e a maioria dos leitores não se dará conta.

Além disto, pesquisas detalhadas costumam reunir muitas informações irrelevantes, que o autor não deve incluir na trama, a não ser que ele veja uma função determinada na narrativa. Serve mais para dar um embasamento para o escritor, para que ele visualize melhor as minúcias da história e possa transmitir com maior segurança sua visão para os leitores.

Pesquisa profunda

Frequentemente, as pesquisas profundas estão relacionadas às próprias áreas de conhecimento do escritor, como um médico falando sobre detalhes da profissão, ou um analista de sistemas sobre computadores. Alguns exemplos de escritores especializados são Tom Clancy (sobre armas e exércitos), Bernard Cornwell (sobre guerras medievais), Umberto Eco (sobre Idade Média), Carl Sagan (Astronomia) ou John Grisham (sobre tribunais).

Nestes casos, é muito improvável que qualquer leitor, excetuando também especialistas das áreas, identifiquem ou reconheçam uma informação equivocada, se houver.
Ser um autor-especialista é, frequentemente, uma vantagem quando se trata de promover e divulgar as obras, pois, mais ou menos como ocorre com livros de não-ficção, a credibilidade do autor entra em jogo.

Outra espécie de pesquisa profunda é quando o autor decide escrever com o jargão, expressões e gírias de determinada época histórica. Alguns dicionários, como o Houaiss, apresentam o ano em que determinado verbete passou a ser utilizado, o que é de grande auxílio para este tipo de investigação.

Fontes textuais, orais e fatuais

A princípio, parece que estamos falando simplesmente de consultar livros ou internet, mas uma pesquisa é muito mais abrangente do que isto.
O escritor pode coletar informações através de palestras, vídeos, conversando com experts nas áreas de interesse, como também visitando locais, como países, cidades ou museus, para poder descrevê-los mais fidedignamente.
Todas as experiências poderão contribuir para dar mais cores à narrativa, torná-la mais verossímil e credível.

Ficção versus realidade

A intenção de muitos autores é a de ser o mais fiel possível aos fatos, por uma simples razão: você deseja que o leitor suspenda sua descrença, acolhendo aquela história "como se fosse real".

Preste bem ao "como se fosse real". Via de regra, o leitor de uma obra de ficção, seja conto ou romance, sabe muito bem que aquilo não ocorreu de fato, que é uma história inventada, com personagens que não existiram realmente.
Uma pesquisa serve, em muitas circunstâncias, mais para dar uma segurança ao autor do que para convencer o leitor.
Basta pensarmos em histórias fabulosas, como "O Pequeno Príncipe" ou muito do que se fez durante o realismo mágico latino-americano, para constatarmos que uma narrativa consistente depende mais do próprio universo que ela engendra, do que de elementos externos que correspondam à realidade.
Ficção não necessita ser realista, nem está constrangida à realidade, ela pode deturpar, alterar ou recriar eventos históricos e geográficos, pode criar um universo totalmente novo onde nenhuma das nossas leis naturais sejam válidas.

Quando a pesquisa se torna uma maldição

Existem duas funções para a pesquisa em uma trama: 1 - servir para aprimorá-la, ou 2 - servir como sua diretriz.
Na primeira função, a pesquisa preenche as lacunas, dá um tempero para a história, reforçando-a. Na segunda, você arquiteta a história de acordo com a pesquisa, construindo seus personagens e enredo em torno dela.
Uma pesquisa se torna uma maldição quando começa a criar ramificações e enreda o escritor em todas suas sutilezas, inviabilizando a escrita enquanto não houver sido coletadas todas as informações consideradas fundamentais.
O escritor fica dependente dos resultados de sua pesquisa, incapaz de avançar na escrita da obra enquanto não houver esgotado todas as possibilidades de respostas.
Como isto é irrealizável, pois uma investigação sempre pode encaminhar a indagações adicionais, o escritor precisa definir uma conclusão, para que possa continuar escrevendo.
Lembre-se que, em ficção, você tem a liberdade de criar e fugir um pouco da pesquisa. Não há necessidade de ser totalmente fiel aos fatos.

Conclusão

Perquisar é uma das tarefas de um escritor. Todavia, não precisa tornar-se um pesadelo.

Se for um assunto que você domina, provavelmente já terá uma série de referências para guiá-lo. No entanto, se for um assunto que desconhece, procure as principais referências sobre ele, dê uma lida geral apenas para indicar-lhe um caminho e tente seguir adiante.
Em ficção, os leitores estão geralmente mais interessados em uma boa história com personagens cativantes do que em um tratado sobre temas específicos e complexos.
A pesquisa é um suporte, não deveria ser o mais importante.

Saturday, March 22, 2014

(Todas) as tarefas do escritor


Henry Alfred Bugalho

O mais óbvio e natural é pensar que o trabalho de um escritor é escrever... E ponto-final.
Uma trama tão desinteressante quanto uma história má escrita.

Na verdade, o trabalho de um escritor é muito mais abrangente e complexo, dividido em três etapas básicas:
1 - planejamento,
2 - execução,
3 - todo o resto.

Planejamento

Muitíssimos autores dedicam um tempo prévio para elaborar seus novos livros, enquanto outros optam por unir planejamento e escrita.
Não há uma fórmula segura e infalível, inclusive, livros distintos podem exigir planejamentos específicos.
Independentemente de qual seja seu estilo de planejamento, você provavelmente passará por várias ou todas destas seguintes etapas.

Inspirando-se em livros, filmes, canções ou outras formas de Arte

Todo escritor é, ou deveria ser, um grande leitor.
Acredito que, para a maioria dos autores, o desejo de escrever parte inicialmente do prazer causado pela leitura e do anseio por escrever histórias tão inesquecíveis quanto aquelas que admiramos.
Se você não gosta de ler, considerando a leitura uma atividade aborrecida, você nem deveria estar perdendo seu tempo escrevendo.

Ler muito e ler sempre é a melhor maneira para aprender com os mestres, sejam com os clássicos, sejam com os best-sellers. Todavia, uma simples leitura não basta: o escritor tem ser, acima de tudo, um analista, tentando compreender a mecânica do enredo, como foram construídos os personagens, os díalogos, as descrições, a ambientação.

Como o livro consegue causar tal emoção no leitor?
Qual é o tema do livro?
Como os personagens se transformam?
Estas e outras questões devem ser feitas e, de algum modo essencial, as respostas o auxiliarão na escrita de sua própria história.

Mas não somente isto.
Assista a filmes, seriados, novelas, peças de teatro, documentários e a tudo que puder. Escritores costumam ser péssimas companhias para ir ao cinema, pois os padrões narrativos são comumente tão previsíveis que, muitas vezes, você poderá detectar o desenvolvimento de uma história logo no começo e também aprenderá a captar as pistas que são lançadas no decorrer da trama.

Aprenda também a buscar inspiração em canções, em pinturas, na dança, na escultura. Às vezes, uma grande ideia pode surgir vendo uma pintura abstrata.
Nunca se sabe.

Pesquisar é essencial

Mesmo se você for um especialista no assunto que está abordando, por exemplo um ex-policial escrevendo um romance sobre a rotina de um investigador de homicídios, quase sempre você terá de fazer uma pesquisa prévia.
Escritores de romances históricos, ou com tramas que ocorrem em outras cidades e países, geralmente dedicam muito tempo de planejamento pesquisando detalhes para tornar sua história mais verossímil.

Que tipo de roupas eram usadas na Inglaterra vitoriana?
O que se come no Nepal?
Quais foram as consequências das guerras napoleônicas na Espanha?
Dependendo da ambientação e do período de sua história, você deverá estar preparado para fazer este tipo de questões e, o mais importante, obter uma resposta.
Isto não significa que você tenha de incluir a sua pesquisa na trama, mas isto o ajudará a enriquecer seu livro de uma maneira muito sutil.
Todavia, vale lembrar que o mais importante é a verossimilhança interna, isto é, que seu enredo faça sentido no interior do próprio livro e que seja convincente.
Nem todos os leitores serão historiadores, médicos, engenheiros, policiais, pilotos de avião, viajantes, ou experts em certas áreas ao ponto de questionarem os detalhes de sua história.
Você não precisa ter ido à guerra e matado pessoas para escrever sobre isto, mas obter um pouco de informação sobre como é esta experiência pode ser bastante útil.

Observar o mundo a seu redor

Acima de tudo, um bom escritor e um bom artista precisa ser também um bom observador.
Preste atenção aos comportamentos humanos, ao que as pessoas falam, como elas reagem em determinadas circunstâncias, como elas expressam o que pensam, quais são seus preconceitos, seus medos, suas manifestações de alegria.
Preste também atenção aos gestos, às expressões faciais, ao não-dito.
Observe também suas próprias sensações e sentimentos. Escrever é, acima de tudo, uma tarefa de autoconhecimento.
Pare um pouco para ver o movimento em uma praça, num shopping center, numa rua movimentada. Assista ao pôr do sol e admire como a tonalidade da luz se modifica no céu, nas pessoas e nos edifícios.
A lição mais essencial para criar Arte é aprender a ver o mundo com novos olhos, assombrando-se diante de eventos insignificantes. Aliás, nem sei se esta é uma habilidade que possa ser ensinada. Penso que o artista é aquele que já tem esta capacidade e expressa-a através de sua obra.

Fazendo um esboço

Esta é uma etapa muito pessoal.
Alguns escritores gostam de escrever uma sinopse sobre como será sua história, outros preferem indicar em tópicos os principais pontos da trama. Há aqueles que criam os personagens com riqueza de detalhes, às vezes até desenhando-os, outros preferem criar toda a história em sua própria mente.
Uma vez mais, não há uma fórmula. Cada autor precisa encontrar o melhor método para si.

Este projeto é apenas uma diretriz para como você desenvolverá sua história, não precisa ser uma camisa de força. Se você considerar que deve mudar algum ponto durante a escrita, não tenha medo.
As melhores histórias costumam ser aquelas nas quais os personagens criam vida e resolvem tomar o controle de seus próprios destinos.
Pode parecer um pouco surreal, mas você perceberá quando (ou se) isto ocorrer.

Execução

Então chegou a hora de sentar-se para escrever seu livro.
Você já tem uma ideia sobre o que escreverá, quais serão seus personagens, seu tema, já pesquisou bastante sobre o assunto, agora deve pôr a mão na massa.
Vai escrever diretamente no computador, à mão, numa máquina de escrever?
Isto não importa. O crucial é que você se sinta confortável com os materiais utilizados e que você tenha uma disciplina de escrita.
Um livro é feito de uma palavra após a outra, portanto, se você não dedicar seu tempo e criar uma rotina de escrita, há grandes chances de jamais concluir seu livro.

A Primeira Versão

Raramente um livro ficará perfeito logo na primeira versão, principalmente se for sua obra de estréia.
Na verdade, esta primeira versão deve ser, ou pode ser, um jorro criativo, na qual você lançará várias ideias, poderá divagar um pouco, fugir da rota traçada, inserir uma porção de personagens, testar um pouco os horizontes do enredo.
Mas não se iluda, a primeira versão é somente a primeira versão. Ainda haverá muito trabalho pela frente.

Edição e revisão

Você terminou a primeira versão.
O melhor que você tem a fazer agora é deixar seu livro quietinho, descansando por um tempo.
Pode ser por duas semanas, um mês, seis meses. O que você achar melhor.
Quando você voltar para reler este livro, há grandes possibilidades de você pensar que é um imbecil.
Como é que fui escrever esta merda?
Eu lhe asseguro que não será o único escritor no planeta a pensar isto. No entanto, paciência, pois é apenas a primeira versão.
Este é o momento de reler seu livro com muita atenção, analisando-o e vendo o que precisa ser editado, cortado, melhorado, reescrito, mudado de posição na história, que personagem é irrevelante ou mal explorado.
Para muitos autores, esta pode ser a etapa mais dolorosa, tendo de jogar fora páginas e mais páginas de material, por mais mal escrito que seja.
Contudo, cortar é preciso!

Uma vez terminada a edição, você pode deixar o livro descansando por mais um tempo para fazer posteriormente uma segunda edição, ou, caso considere a obra acabada, passar para a revisão, que inclui detectar erros ortográficos, gramaticais, de coerência (um personagem que se chama João num capítulo e, no outro, Joaquim) ou de fatos errôneos.

O melhor conselho que posso lhe dar é não ter pressa e não queimar etapas. A escrita, edição e revisão de um livro pode levar anos, às vezes décadas, para ser realizada satisfatoriamente.

Leitor crítico e leitor beta

Um leitor crítico é aquele que analisará minuciosamente sua obra e lhe dará recomendações sobre como melhorá-la. O usual é que cobrem por este serviço e não é barato.
Já o leitor beta é aquela cobaia que lerá (voluntariamente ou sob coação) seu livro e lhe dará um parecer pessoal sobre ele. Podem ser amigos, parentes, conhecidos, outros escritores ou alguns de seus fãs.
Após receber estas análises, fica a seu critério fazer ou não novas alterações em seu livro de acordo com as sugestões. Lembre-se sempre que opiniões são opiniões, mesmo se vierem de profissionais, e que uma pessoa pode detestar sua história, enquanto outra adorar.

Estas etapas não são imprescindíveis, mas altamente recomendáveis, especialmente se for no começo de sua carreira e você estiver bastante inseguro.

Todo o resto

As mais fáceis e prazerosas das tarefas do escritor passaram, todo o resto é trabalho duro.

Enviando o original para editoras

Se você não for um autor publicado, chegou a hora de correr atrás das editoras.
Este é o segundo grande funil da carreira literária, sendo que o primeiro era escrever um livro do começo ao fim.
Agora é a hora de uma segunda pesquisa para descobrir quais editoras publicam o tipo de livro que você escreve.
Vá a uma livraria e dê uma olhada nos títulos e quais são suas editoras. Anote o nome e o endereço delas. Geralmente, no site das editoras, há as informações sobre envio de originais, quais os procedimentos e se estão recebendo ou não.

Enviar um livro para uma editora é um tiro no escuro e as chances de ser publicado são irrisórias.
Portanto, não alimente grandes esperanças e já comece a conceber planos alternativos.

Preparando um livro para publicação independente

Você enviou seu original para meia dúzia de editoras e, após vários meses, você acabou de receber a última carta de recusa. (Aproveite para ler O que todo escritor deveria saber sobre ser rejeitado)

Primeiro, bate aquele desânimo, aquela vontade de mandar todo o mundo tomar no cu.
Depois vem um novo influxo de ânimo e você decide que fará tudo por conta própria.

Boa sorte e bem-vindo ao mundo da autopublicação!

Há três possibilidades:
1 - contratar uma editora que preparará o material e o trabalho gráfico para você,
2 - assumir conta de todo o processo, ou
3 - publicar na internet.

O primeiro pode ser mais barato, dependendo do caso, mas os lucros, se houver, serão muito pequenos.
O segundo é mais trabalhoso, mais caro, mas, se houver lucro, será todo seu.
O terceiro é o mais simples, rápido e indolor. Há vários sites, como Amazon e Smashwords, nos quais você pode fazer o upload de seu arquivo e, em minutos, estará vendendo seu livro digital.
A escolha dependerá do seu espírito empreendedor.

Fazendo o lançamento do livro

Se você optou pela rota tradicional, com livro impresso e tudo o mais, ficará tentando a fazer um lançamento.
Convide os amigos, parentes e todos os seres humanos que já passaram por sua vida, reais ou virtuais, para irem ao coquetel de lançamento.
A não ser que você seja muito popular, esteja preparado para ficar sozinho numa livraria esperando alguém vir.
É deprimente, mas real.

Divulgação

Toda a tarefa de divulgar seu livro e atrair leitores será da responsabilidade do escritor.

Mesmo se você houver sido publicado por uma grande editora, a não ser que você seja um figurão ganhador de prêmios e venda muito, quem terá de correr atrás de jornalistas (o papel da imprensa e da mídia na carreira de um escritor, o que muda?), promovendo sua obra em eventos, na quermesse da igreja, nas redes sociais, em cartazes em postes, será você.
Somente você!

"Descubrabilidade"

Uma das palavras da moda da era digital é discoverability, ou numa tosca tradução literal, "descubrabilidade", ou seja, a capacidade de algo em ser descoberto em meio a uma quantidade monumental de informações.
Milhões de livros são publicados em todo o mundo a cada ano.

Como é que você fará para que o leitor encontre e compre seu livro?

Esta é a pergunta de um milhão de dólares e o terceiro, mais brutal e injusto funil de todos desta carreira.

A única solução para este sistema desigual é persistência e trabalho duro, conquistando um leitor por vez, criando uma presença no mundo virtual, participando de todos os eventos literários que puder.
Quem não se mostra não é visto, e quem não é visto não é lido.

Conclusão

O grande equívoco de quem vê de fora é pensar que um escritor é aquele que escreve.

Ser escritor é conceber, planejar e escrever um livro, mas também reescrevê-lo, reescrevê-lo, reescrevê-lo, revisá-lo, revisá-lo, revisá-lo, tentar publicá-lo, tentar divulgá-lo, tentar vendê-lo, tentar ser lido...

E começar tudo de novo com o livro seguinte.

Tuesday, March 18, 2014

O que todo escritor deveria saber sobre ser rejeitado


Se há uma única verdade na carreira de escritor é que você será rejeitado. Não importa se você escreve bem ou mal, se é rico ou pobre, se é branco ou negro, se é homem ou mulher, se mora em São Paulo, no Rio ou no meio da floresta Amazônica.

Você será rejeitado.

Alguns ouvirão mais "nãos" do que outros. Alguns ouvirão "não" por mais tempo. Alguns ouvirão "não" até o dia em que morrerem.

As primeiras rejeições doem, principalmente porque o atingem naquele momento mais frágil, quando se está começando, quando qualquer aprovação ou elogio já nos insufla de esperança.
Tudo que um escritor em início de carreira quer ouvir é um "sim", por mais tímido e insignificante que seja. É o estímulo inicial, um sinal de que, pelo menos, ele tem algum talento ou alguma mensagem revelante.
Por isto é que as rejeições nesta etapa são tão brutais e inesquecíveis, pois atingem um ânimo frágil como porcelana. Muitos escritores jamais superam estas recusas, abandonando qualquer projeto futuro de escrita.
No fundo, estes não eram talhados para a carreira, que não é feita somente de rejeições, mas também de críticas ácidas, muitas vezes destrutivas. Às vezes, até aquele que acolhe bem um "não" tem dificuldades para suportar os comentários negativos depois. São duas capacidades complementares de suportar a dor.

As rejeições virão de todos os níveis.
Certamente que os grandes não aceitarão nada vindo de um desconhecido. As portas das grandes editoras raramente estão abertas para completos anônimos.
O mesmo vale para importantes revistas literárias e suplementos culturais, bem como para prêmios literários que pagam bem.
Na verdade, se você não tiver um currículo impressionante, nem será lido.
As editoras menores poderão até ser mais acessíveis e, usualmente, são as portas de entrada de autores estreantes, porém, assim como você, há uma legião de iniciantes também investindo neste caminho. Muitos deles escreverão melhor do que você, já terão mais tempo de estrada, já terão um nome neste meio, e até assim você ouvirá um "não".

A escrita não é uma competição, de quem escreve melhor ou pior, porém, até conquistar seu espaço, você terá de disputar com os outros.
A carreira literária não é exatamente uma maratona, que ganha quem chegar em primeiro, é mais como uma corrida pela sobrevivência: quem aguentar até o final, quem suportar mais rasteiras, quem levar mais porrada sem ser nocauteado também é ganhador.
Acima de tudo, persistência (ou teimosia) é mais importante do que talento.

Em algum momento, você se acostumará a ouvir "não", ao ponto de nem se abalar mais. Será como uma coleção qualquer, de selos, moedas, borboletas, cartas de recusas de editoras.

Um dia, talvez você ouça um "sim". Comemore, estoure um champanhe, grite sozinho no quarto. Talvez seja o primeiro "sim" de muitos, mas pode ser que seja o único "sim" de sua carreira.
Simplesmente não há como saber.

Com o tempo, as portas talvez comecem a se abrir. Primeiro uma, depois outra, depois várias. Então, haverá tantas portas abertas que você nem saberá em qual entrar.
Frequentemente, os mesmos que rejeitaram aquela mesma obra agora a aceitarão.
No entanto, cuidado, basta um passo em falso para que todas estas portas se fechem novamente. Este não é um ramo que perdoa deslizes. Cometa um erro grave e você terá de batalhar tudo de novo.

Você será rejeitado, caro escritor, inevitavelmente. Até os grandes passaram por isto, até os Prêmios Nobel de Literatura, até os imortais que você estudou na escola, até os gênios da escrita.
Não que isto sirva de consolo, mas alguns dos maiores autores de todos os tempos morreram no anonimato. Eles fizeram da escrita uma cruzada, confrontando um inimigo invencível, sem certezas algumas.
Você será rejeitado, mas é a aceitação que nos move adiante. A expectativa da aceitação. A expectativa de sermos lidos. A expectativa de sermos reconhecidos como escritores.
Você será rejeitado, mas também poderá ser aceito.
Então por que não tentar?
Por que não insistir um pouco mais?
Por que não confiar em seu dom?
Por que não continuar escrevendo, dividindo com o mundo seus sonhos, mágoas e reflexões?
Por que não?

Sunday, March 09, 2014

Qual é o direito do leitor de descer o cacete num livro?


Possivelmente, um dos meus livros de ficção mais lidos é também o mais pirateado, ou melhor, é uns dos mais lidos justamente porque é pirateado.
Inclusive, é também um dos meus piores livros e, por esta razão, um dos mais criticados pelos leitores.
Durante meses, desde que o arquivo surgiu em praticamente todos os blogs brasileiros que distribuem livros piratas, tenho acompanhado a reação dos leitores no skoob (www.skoob.com.br).
Até a data de hoje, 22 pessoas leram, 1 está lendo, 2 abandonaram e 14 ainda vão ler.
Não me lembro de ter vendido tantos exemplares deste livro e, para piorar, estes são somente os leitores registrados no site e que informaram seus hábitos de leituras.
Você pode facilmente multiplicar o número de downloads piratas por 10 ou 20 vezes. Talvez até por muito mais.

Mas o meu problema nem é este, posto que por alguns anos distribuí alguns dos meus livros de graça. Na época, eram bem poucos os que se interessavam em lê-los. "Se é de graça, então não deve valer nada", podia até ouvir o pensamento de muitos destes leitores.
Agora que é pago (e pirateado), o que escrevo talvez valha alguma coisa...

A minha questão neste momento, e imagino que deva ser genuína, é até que ponto o leitor tem direito de descer o cacete em um livro?

Sou bastante tolerante com a crítica, inclusive por anos organizei/participei de oficinas literárias com outros autores onde cada um lia e comentava as obras alheias. E não pense que estou falando de afagos e elogios, mas de críticas severas, a ponto de fazer com que alguns chorassem quietinho num canto (é o que penso, pelo menos).
Criei algumas inimizades nestas oficinas, mas nunca me ofendi com nenhuma das críticas, nem mesmo com as pessoais.

Entendo que o leitor tem um papel preponderante em relação à escrita. Um livro sem leitores é um livro morto, sem propósito, sem função. É fundamental que alguém apanhe aquela obra, mergulhe em seu universo e traga à vida seus personagens.
Somente isto justifica a existência da Literatura. Trata-se de um triângulo necessário entre autor-obra-leitor.
Nem todos os escritores se sentem confortáveis ao escutar o que pensam os leitores. Para eles, a escrita é uma via de mão única: eles produzem para o mundo, mas não se importam sobre como o mundo interpretará seu trabalho. Qualquer desvio na interpertação daquilo que ele tencionava basta para deixar este autor de mau humor, como se os leitores fossem bestas incapazes de compreender qualquer coisa.

Do mesmo modo que o autor tem plena liberdade para escrever o que lhe vier à mente, o leitor também tem bastante liberdade para interpretar aquelas palavras no livro, de preferência resguardando-se a certos limites da trama, porém, limites que são bastante subjetivos.
Estamos no interior do universo da interpretação e, quando escrevo "casa", posso ter imaginado uma casinha simples, com um portãozinho pequeno e uma roseira no quintal, enquanto que, na concepção do leitor, esta mesma palavra pode trazer uma série completamente diferente de imagens e impressões.
Cada palavra, frase, parágrafo e página de um livro visa delimitar uma experiência narrativa, tornando claros para os leitores pensamentos, descrições, diálogos e personagens. Alguns autores tendem (intencionalmente ou não) a ser mais ambíguos do que outros, a jogar com os sentidos e a explorar as entrelinhas. Outros querem ser transparentes do começo ao fim, sem deixar margem para dúvida.

De qualquer modo, o leitor, em seu horizonte interpretativo, tem toda a liberdade de ler e entender um livro de acordo com suas próprias experiências e navegar através da narrativa com os instrumentos teóricos ou práticos que possui. Ele também tem a liberdade de gostar ou não do que leu segundo tais parâmetros.

Por outro lado, caso o autor venha a ter contato com esta interpretação dos leitores, ele também é livre para considerá-la equivocada, ou insuficiente, de acordo com a sua proposta de escrita, ou de assimilar a crítica e utilizá-la como uma referência para textos futuros.

O fato é que vivemos numa era opinativa, quando qualquer um se sente apto a emitir considerações sobre qualquer assunto. Portanto, não é qualquer crítica que terá embasamento, nem que deva ser levada seriamente.
Ao invés de se ofender com qualquer comentário negativo, o autor tem a opção de pôr-se no lugar do leitor e fazer um esforço para entender em que momento a expectativa dele sobre o livro se frustrou.

No entanto, por mais que a crítica negativa não me incomode (prefiro uma crítica negativa do que a indiferença), confesso que me desanima um pouco receber comentários, positivos ou negativos, de leitores que baixaram um exemplar pirata.
Apesar de saber que a maioria dos leitores não ergue questões morais sobre isto, não consigo evitar de sentir como se parte do meu trabalho houvesse sido roubada, e que o criminoso ainda se gabasse disto na minha frente.
Raríssimas vezes recebi qualquer comentário sobre meus livros gratuitos.
De graça não tem graça...
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