Tuesday, April 20, 2010

Beckett e a desconstrução do humano

O século XX representou a quebra de todos os paradigmas, todos os ídolos, todas as tradições.
Apesar de este processo de transformações estar presente de maneira bastante nítida durante toda a História da Humanidade, em nenhum outro momento a ruptura se tornou tão evidente e teve por objetivo a própria ruptura.
Marx, Nietzsche e Darwin foram os primeiros a vislumbrarem este novo mundo, ainda no século anterior. Semearam as bases para a modernidade e instauraram, ou detectaram, a ânsia por mudanças.
Logo no início do século XX, o cenário social, intelectual e cultural estava atribulado. Freud apresentava uma nova visão sobre as patologias mentais e, por extensão, sobre o próprio ser humano; na Rússia, Lênin conduzia a maior e mais decisiva revolução política da Europa; enquanto em Paris, pintores, escritores, músicos e escultores abriam as portas para a modernidade, abandonando a linguagem academicista e estabelecendo novas formas de expressão — Stravinsky, Picasso, Proust, Joyce, Rodin, Kandinsky, Miró, entre outros, estiveram na vanguarda destes novos tempos.

O mentor e o discípulo
“Ulisses”, considerado como um dos mais importantes romances do século XX, foi publicado em 1922. Até então, James Joyce era conhecido apenas em pequenos círculos literários, mas a publicação deste romance propagaria seu nome pela Europa e o incluiria na galeria dos grandes escritores do mundo.
Graças a “Ulisses”, James Joyce chegou a ser cogitado para o Prêmio Nobel de Literatura, o que, contudo, jamais ocorreria. Nesta obra, Joyce inaugurava, quase simultaneamente a alguns poucos autores, uma nova técnica de escrita — o fluxo de consciência. Do mundo exterior, o foco da escrita passou ao complexo e fugaz mundo interior.
Alguns anos depois, James Joyce e Samuel Beckett se conheceram. Ambos eram irlandeses, ambos eram auto-exilados, ambos estavam imbuídos da missão literária de desvendar as profundezas humanas.
Joyce buscava a plenitude, recriar e englobar o mundo inteiro em sua escrita. “Ulisses” é um desfile pelo universo da Literatura, onde várias formas, vários estilos, vários pontos de vista, vários personagens são apresentados. Era um prenúncio para o maior experimento literário de Joyce, “Finnegans Wake”, uma obra sem começo nem fim, que reunia algumas dezenas de idiomas para construir uma nova linguagem, híbrida e polissêmica. Beckett foi um dos colaboradores de Joyce durante a pesquisa para “Finnegans Wake” e, diante do processo criativo e da genialidade de Joyce, Beckett percebeu que esta era uma trilha que ele jamais poderia trilhar.
Se Joyce ansiava pela totalidade, Beckett teria de se contentar com o nada.

A Trilogia

Beckett inicia uma trilogia romanesca em 1951. O primeiro dos livros é “Molloy”, a história de um jovem homônimo que vaga pelas ruas de uma cidade, primeiro com sua bicicleta, depois se arrastando. Na segunda parte, o detetive Moran e seu filho são incumbidos de encontrar Molloy e, de uma maneira um tanto mais coerentes, os eventos ocorridos a Molloy se repetem com Moran. Críticos sugerem que o protagonista da obra é um esquizofrênico, Moran e Molloy seriam personalidades de uma única pessoa.
Desta trilogia, este é o único romance que ainda traz resíduos de enredo e coerência. Beckett já demonstra o antagonismo temático a Joyce, apesar de apresentar-se sob a mesma vestimenta técnica, o fluxo de consciência e o mergulho na essência do ser humano. No entanto, para Beckett, a essência é o vazio, o nada, o ser rastejante e sem sentido que somos, o extremo oposto do homem total e universal de Joyce.
No segundo romance, “Malone Morre”, Beckett narra os últimos dias de Malone em seu leito de morte. O romance se limita a descrever as impressões e algumas rememorações fragmentárias do narrador-protagonista. Alguns temas de “Molloy” ressurgem, como o ser rastejante, a falta de memória, as recordações equivocadas ou incompletas, a falta de vínculos entre as pessoas, o nada, nossa impotência diante da vida, nossa servitude.
No entanto, apenas em “O Inominável” que Beckett parece concretizar toda sua cosmovisão da escrita, um romance sem protagonista, sem enredo, sem coerência, uma nada verbal que se prolonga por centenas de páginas. Um verdadeiro monumento ao esvaziamento do sentido, a obra-prima da desconstrução do humano e da identidade.
Toda a trilogia foi escrita diretamente em francês, ao invés da língua nativa de Beckett, o inglês. O autor justifica esta escolha afirmando que em francês era mais fácil para ele escrever sem estilo. Novamente, o fantasma do mentor Joyce pairava sobre Beckett, onde aquele era pleno e perfeito, este tinha de ser falho e incompleto, sem estilo, menor.

Esperando Godot

Apesar do prosador estupendo, foi no teatro que a carreira de Samuel Beckett se consolidou. Aliás, foi logo numa de suas primeiras peças, “Esperando Godot”, que ele se consagraria no cenário dramatúrgico.
Uma crítica de teatro afirmou que Beckett “havia obtido uma impossibilidade teórica — uma peça na qual nada ocorre, e que mesmo assim mantém a plateia grudada no assento. Mais do que isto, sendo o segundo ato uma sutil repetição do primeiro, ele escreveu uma peça na qual nada ocorre duas vezes”, pois todo o enredo se resume a dois personagens, Vladimir e Estragon, aguardando Godot, que não aparece.
Afirmar que nada acontece é exagerado, pois certos eventos transcorrem durante esta espera, no entanto, tanto no primeiro ato quanto no segundo ato, que é uma espécie de paródia do primeiro, o que insufla os protagonistas é a angústia do evento que há de se suceder, mas que não se realiza.
As interpretações do sentido da peça são múltiplas, alguns sugerem que Godot é um símbolo de Deus (God), mas Beckett logo rejeitou esta hipótese — “se eu quisesse ter dito Deus, teria dito Deus e não Godot”.
No fundo, “Esperando Godot” é apenas uma reasserção da descoberta feita por Beckett na trilogia romanesca: não somos nada a não ser a eterna projeção sem sentido de nós mesmos para o fim. Dia após dia, os personagens de Beckett, incrivelmente semelhantes à maioria de nós, movem-se (ou se arrastam) para o fim, sem lógica, sem razão, sem compreensão, aprisionados à inexorável marcha do tempo.

Conclusão
Beckett foi um herdeiro literário direto de Joyce. Estilisticamente, fracassou onde Joyce prevaleceu, porém, Beckett venceu onde Joyce foi derrotado. Em 1961, Beckett dividiu o Prix Formentor com Jorge Luis Borges, premiação que projetou internacionalmente a carreira de ambos. Em 1969, Beckett se tornou o terceiro irlandês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, depois de Yeats e Bernard Shaw.
Todavia, assim como Joyce, Beckett terminou por se tornar um daqueles autores idolatrados, admirados, temidos, imitados, mas pouco lidos.
Numa carta, Frank, irmão de Samuel Beckett, indagou-lhe: “Por que não consegues escrever do jeito que as pessoas gostariam?”.
Talvez uma resposta que Beckett poderia ter dado é que desvendar o ser humano não é a tarefa das mais agradáveis de se ver, tampouco pode ser expressa de maneira simplória.
O anti-homem da escrita de Beckett não poderia estar mais próximo de nós, pois está em nosso interior.

Artigo publicado originalmente na Revista SAMIZDAT
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