Friday, July 03, 2015

O pecado de não escrever sobre o Brasil

Henry Alfred Bugalho

É difícil avaliar o estrago que a frase "Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia" de Tolstói causou no imaginário coletivo da literatura.

Se fôssemos interpretar esta recomendação de um modo que não literal, suporíamos que tem a ver com a noção de Mark Twain: "Write what you know" (Escreva sobre o que você conhece).

Embora elas pareçam estar muito próximas, - afinal de contas, o que você conhece melhor do que sua própria aldeia? E que maneira melhor para falar sobre todas as pessoas do que falando das pessoas que você conhece, posto que, essencialmente, somos todos iguais? - há uma extrapolação desnecessária de uma para a outra.

Poderíamos citar uma variedade de casos de autores que seguiram à risca esta recomendação de Tolstói.
Grande parte das obras de James Joyce (Dublin), Dalton Trevisan (Curitiba), Charles Dickens (Londres), Érico Veríssimo (Rio Grande do Sul), Charles Bukowski (Los Angeles), Patrick Modiano (Paris), Jorge Amado (Bahia), entre vários outros, revolvem ao redor de suas aldeias, mesmo que estas aldeias sejam metrópoles com milhões de habitantes ou vastas regiões geográficas que eles conhecem bem.
Estes exemplos passam-nos o retrato incorreto de que este é o único modo de se aprofundar no espírito de um local ou população. Fugir disto seria uma deslealdade.
Um indivíduo pode conhecer tudo sobre a Grécia Antiga, seus mitos, histórias e personagens, sem jamais ter posto os pés na Grécia atual, sem jamais ter saído de sua aldeia, aliás, conhecendo-a melhor do que a sua própria cidade-natal. Não há absolutamente garantia alguma que conhecemos melhor nossa aldeia de modo que possamos falar com propriedade sobre ela e, assim, atingirmos algum nível de universalidade.

Recentemente ouvi que os editores brasileiros descartam imediatamente qualquer original que tenha personagens com nomes estrangeiros ou ambientados em outros países.
Eles devem ter suas razões para isto, pois não me parece sensato nem profissional abandonar um livro somente por este motivo, mas isto certamente revela também uma concepção enraizada no mercado brasileiro de que autor brasileiro bom tem de falar sobre o Brasil, ou pelo menos com personagens brasileiros, mesmo que seja em um ambiente estrangeiro (em Budapeste, de Chico Buarque, ou em Vidas Provisórias, de Edney Silvestre).
Logo me vem à mente Shakespeare. Suas biografias não informam se alguma vez ele viajou para fora
da Inglaterra, mas isto jamais o impediu de escrever, de maneira extremamente competente e universal, sobre a Dinamarca (Hamlet) ou a Itália (Verona, em Romeu e Julieta, Veneza, em Otelo, e Roma Antiga, em Júlio César e em Antônio e Cleópatra), isto para citarmos apenas algumas de suas peças.
Outro mestre que jamais teve qualquer receio de escrever em ambientes internacionais foi Jorge Luis Borges, sobre a Irlanda, Babilônia, China, Grécia, França, Inglaterra, Alemanha, Oriente Médio, entre vários cenários exóticos, mitológicos ou imaginários, com personagens das mais distintas nacionalidades, com elementos de uma vasta gama de culturas. Isto não foi um obstáculo para que ele escrevesse extensivamente também sobre Buenos Aires ou a Argentina, ou de ser considerado como um dos maiores expoentes da literatura de seu país.
O monumental romance 2666, considerada a obra-prima do chileno Roberto Bolaño, é uma verdadeira salada de personagens e ambientações internacionais, embora haja um personagem chileno perdido no enredo.
Mesmo entre os ganhadores do prêmio Nobel encontramos exemplos de narrativas que extrapolam os limites de suas aldeias: tanto o alemão Hermann Hesse (Sidarta) quanto o britânico Kipling (Kim e Livro da Selva) se inspiraram na Índia, o português Saramago (Evangelho Segundo Jesus e Caim) na mitologia bíblica, o peruano Vargas Llosa (Guerra do Fim do Mundo) escreveu um romance inspirado na Guerra de Canudos, e o sul-africano J. M. Coetzee (O Mestre de Petersburgo) um romance tendo como protagonista Dostoievski e ambientado na Rússia.
Isto porque nem estamos mencionando histórias que se passam em universos completamente fantásticos e imaginários, como a Terra-Média, Nárnia, Westeros, em outros planetas ou dimensões, em algum lugar indefinido no passado ou no futuro.
Além disto, algumas tramas de Kafka (Metamorfose e O Processo) ou de Beckett (Esperando Godot ou em sua trilogia de romances) não possuem qualquer tipo de ambientação específica, podendo ser transpostas para praticamente qualquer país ou cidade.

É evidente que, ao tentar se escrever sobre um país estrangeiro, corre-se o grande risco de recorrer a estereótipos étnicos e nacionais, mas o que é mais estereotipado do que a quadra clássica da literatura nacional de selva, sertão, praia e favela?
E o que é mais tedioso do que a tendência autorreferencial atual entre os escritores brasileiros, escrevendo sobre escritores de classe média escrevendo um livro, pois o que conhecemos melhor do que a nós mesmos e aquilo que nos circunda?

Parece-me que o que é bom para os outros, não serve para nós, fadados a escrever irremediavelmente sobre nossas próprias aldeias.
Para um brasileiro, não há futuro além das fronteiras.
Nossa nacionalidade é também a nossa prisão criativa.
Pintar algo que não seja nossa aldeia é inconcebível, com a maior punição possível: o descarte. Não merece sequer ser avaliado.

fonte da imagem: http://footage.framepool.com/shotimg/qf/474462139-earth-orbit-earth-planet-sfere-form-black-color.jpg

No comments:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Seguidores

Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.