
Henry Alfred Bugalho
A internet é uma maldição disfarçada de benção; é o que estou concluindo neste exato instante.
Foi um percurso progressivo. Em 1994, quando comecei a usar a internet pela primeira vez no trabalho, ela devia ocupar uma fração insignificante do meu dia. Afinal de contas, nem havia tanto o que se ver on-line.
Depois vieram as salas de bate-papo e o ICQ, varando a madrugada conversando com desconhecidos de todo o lugar do mundo. Mas isto era feito apenas depois da meia-noite, pois, com a conexão discada, você só pagava um pulso telefônico, senão a conta de telefone pararia nas nuvens.
A socialização da internet também significou a ruptura com a vida real fora dela. Tudo hoje é mediado pela rede: o que fazemos, comemos, vestimos, onde estamos, para onde fomos, o que vamos fazer.
Nossas existências não valem de nada se não forem compartilhadas nas redes sociais. A vida real não existe mais paralelamente à rede; elas estão entrelaçadas de um modo indistinguível.
Além disto, e como parte deste processo, vivemos na era da obsolescência. Toda nova tecnologia lançada hoje, amanhã já está ultrapassada, obrigando-nos ao consumo desenfreado para nos manter atualizados.
É um ciclo interminável e sufocante. Comprar, comprar, comprar. Mas tornando-nos sempre irremediavalmente obsoletos.
Eu trabalho on-line, mas, nos intervalos (ou simultaneamente a) do que deve ser feito, há todo um desperdício de tempo com aquilo que nos distrai. As notificações do Facebook, os e-mails que chegam sem parar e a avalanche de spams, a porra do Whatsapp sempre apitando, os comentários no blog, as notícias nos jornais, os vídeos no Youtube, ou qualquer coisa mais entretida do que o trabalho que devemos realizar.
Quando anos atrás li uma entrevista com João Ubaldo Ribeiro, "A Internet é a Perdição do Escritor", na qual ele afirmava que mal conseguia escrever por causa da internet, pensei que fosse um fenômeno que só realmente afetaria aqueles pertencentes a outras gerações, que não cresceram neste ambiente digital, que não estavam psicologicamente preparados para este mundo de distrações.
Entretanto, logo comecei a ouvir mais e mais reclamações de autores da minha idade sobre o mesmo problema, até que, enfim, eu também me senti afetado.
Os últimos meses foram devastadores para a minha produção literária. Semanas sem conseguir escrever uma única linha de ficção. Um desânimo sem fim, alimentado pelas distrações on-line.
É evidente que não poderíamos pôr toda a culpa na internet. Desde que meu filho nasceu, a minha rotina mudou drasticamente e, em seguida, senti que a minha relação com a escrita havia se desgastado.
No fundo, a culpa era inteiramente minha, mas a internet servia de catalisador.

Ao ouvir falar da Freewrite (antigamente conhecida como Hemingwrite), uma máquina de escrever digital para os tempos modernos, sem acesso à internet e que permitiria que seus usuários se concentrassem somente na escrita, logo pensei: está aí exatamente o que eu preciso!
Mas a Freewrite é um artigo de luxo para a maioria de nós. Seu preço de lançamento ficará na faixa dos 400 dólares. Convenhamos que é um valor considerável para um dispositivo dedicado à escrita, esta profissão ingrata que geralmente mal serve para pagar as contas.
Então, semana passada fiquei sabendo do AlphaSmart, que nada mas é do que um teclado com um visorzinho, e que serve apenas para isto: escrever.
O fabricante deixou de produzir estes dispositivos há alguns anos, mas, em seu auge, o AlphaSmart também tinha um preço alto, de aproximadamente 200 dólares.
Era um produto voltado principalmente às escolas e, aparentemente, era bastante popular nos EUA e na Europa.
Hoje, pode-se encontrar no eBay vários modelos por preços bastante acessíveis, mas confesso que fiquei com um pouco de medo a princípio.
Valeria a pena pagar 35 libras em uma porcaria destas?
Faria alguma diferença de fato nos meus hábitos de escrita ou seria apenas mais um cacareco a ficar sendo jogado de um lado ao outro pela casa?
Resolvi me arriscar...
Em três dias, escrevi umas 10 mil palavras, o que é muito mais do que consegui produzir em meses.
Pode ser apenas a empolgação da novidade, mesmo sendo um dispositivo obsoleto, mas o fato é que é extremamente prático para escrever.
Primeiro, porque me liberta das distrações da internet; são momentos que estou totalmente concentrado no que estou fazendo, e não há outra opção senão escrever.
Mas então alguém poderia argumentar: mas basta desligar o computador ou o notebook da internet.
Talvez, mas com o AlphaSmart, eu posso simplesmente me sentar em qualquer lugar sem me preocupar se o meu filho não vai pular no meu colo e quebrar alguma coisa, pois foi uma aquisição barata e também parece ser bastante resistente; lembre-se que era para as escolas, e alunos não são criaturas muito cuidadosas.
Além disto, pelos comentários que li, as pilhas duram uma eternidade (alguns mencionaram até mais de um ano sem trocá-las), ou seja, não é preciso ficar se preocupando em recarregá-lo ou ligá-lo na tomada toda hora.
Já escrevi com ele na minha mesa de trabalho, no sofá, sentado no quintal e, neste momento, estou com ele na poltrona enquanto meu filho brinca ao meu lado.
E para passar o texto para o computador é a coisa mais simples deste mundo, basta conectar o cabo USB e assistir enquanto tudo aquilo que você vomitou inconsequentemente no teclado é redigitado no processador de texto.
Eu lhe asseguro que a qualidade do que você escreve cai bastante quando a produção diária aumenta deste modo vertiginoso.
Mas a escrita é um exercício. É preciso mergulhar fundo no lodaçal para conseguir chegar a algum lugar. Em meio a tantas palavras, certamente haverá alguma que mereça ser lida por alguém.
Este tipo de processo criativo é somente para a escrita. Depois vem a edição, que é quando você separará o que merece sair para o mundo.
Até quando continuará esta empolgação?
Não tenho como dizer, mas se o AlphaSmart me ajudar a acabar o romance que tenho escrito intermitentemente durante os últimos sete anos, já terá valido muito a pena.
Terá ressuscitado um pouco daquele ímpeto criativo que eu pensava estar morrendo, mas que, no fundo, só estava meio dormente. Terá salvado, mesmo que temporariamente, a minha escrita.
Referências
Entrevista com João Ubaldo Ribeiro
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/147801_A+INTERNET+E+A+PERDICAO+DO+ESCRITOR+
Freewrite (máquina de escrever digital)
https://astrohaus.com/
Teclado sem @ (artigo de André Timm sobre sua transição para uma máquina de escrever [analógica])
https://medium.com/@andretimm/teclado-sem-75846f2107ad