Thursday, June 07, 2007

Um Futuro para o Romance - Alain Robbe-Grillet

Por um Novo Romance
Um Futuro para o Romance


De: Alain Robbe-Grillet

Traduzido por: Henry Alfred Bugalho

À primeira vista, parece pouco razoável supor que uma literatura completamente nova possa ser, um dia - agora, por exemplo -, possível. As muitas tentativas feitas nestes últimos trinta anos para arrancar a ficção de seu marasmo resultaram, no máximo, em nada mais do que obras isoladas. E - dizem-nos freqüentemente - nenhuma destas obras atraiu, independente de seu interesse, a adesão dum público comparável ao do romance burguês. A única concepção de romance que possui circulação atualmente é, na verdade, aquela de Balzac.

Ou a de Mme. de La Fayette. Já sacrosanta em sua época, a análise psicológica constitui a base de toda prosa: ela governou a concepção do livro, a descrição de seus personagens, o desenvolvimento de seu enredo. Um "bom" romance permaneceu, desde sempre, um estudo duma paixão - ou dum conflito de paixões, ou da ausência duma paixão - numa dada ambientação. A maioria dos romancistas contemporâneos do tipo tradicional - aqueles, isto é, que tentam obter a aprovação de seus leitores - poderia inserir longos prechos de A Princesa de Clèves ou de O Pai Goriot em seus próprios livros sem despertar suspeitas do enorme público que devora qualquer coisa que eles engendram. Os escritores precisariam apenas mudar um frase aqui ou ali, simplificar certas construções, permitir-se um vislumbre ocasional de seu próprio "jeito" através duma palavra, uma imagem ousada, o ritmo duma sentença... Mas todos reconhecem, sem notar nada de peculiar em relação a isto, que a preocupação deles, enquanto escritores, são datadas de muitos séculos atrás.

O que há de tão surpreendente sobre isto, no final das contas? A matéria-prima - a língua francesa - sofreu apenas pouquíssimas modificações em três séculos; e, se a sociedade tem se transformado gradualmente, se técnicas industriais obtiveram progressos consideráveis, nossa civilização intelectual permaneceu quase a mesma. Vivemos essencialmente os mesmos hábitos e as mesmas proibições - morais, alimentícias, religiosas, sexuais, higiênicas, etc. E, é claro, há sempre o "coração" humano, que é considerado por todos como eterno. Não há nada de novo debaixo do sol, tudo já foi dito antes, entramos no palco tarde demais, etc., etc.

O risco de tais recalques avulta-se apenas se alguém ousa proclamar que esta nova literatura não somente é possível no futuro, mas que já está sendo escrita, e que ela representará - em sua realização - uma revolução mais completa do que aquelas que no passado produziram tais movimentos, como o Romantismo ou Naturalismo.


É claro que há algo de ridículo numa tal promessa de "Agora as coisas serão diferentes!" Como elas serão diferentes? Em qual direção elas mudarão? E, especialmente, por que elas mudarão agora?

Contudo, a arte do romance decaiu a um tal estado de estagnação - uma lassidão reconhecida e discutida pela totalidade da opinião crítica - que é difícil imaginar que esta arte possa sobreviver por muito tempo sem alguma mudança radical. Para muitos, a solução parece ser simples o bastante: sendo esta mudança impossível, a arte do romance está morrendo. Nem de longe isto é uma certeza. A História revelará, em poucas décadas, se os vários cortes e começos que foram registrados são sinais duma agonia mortal, ou dum renascimento.


Em qualquer caso, não devemos nos equivocar quanto às dificuldades que tal revolução encontrará. Elas são consideráveis. Todo o sistema de castas de nossa vida literária (do editor até o leitor mais humilde, incluindo o livreiro e o crítico) não tem escolha senão se opôr à forma desconhecida que está tentando se estabelecer. As mentes mais inclinadas à idéia duma mudança necessária, aquelas mais dispostas a aceitar e até mesmo saudar a validade do experimento, mantém-se, contudo, herdeiros duma tradição. Uma nova forma sempre se parecerá mais ou menos como uma ausência de qualquer forma, posto que ela é, inconscientemente, julgada em comparação com as formas consagradas. Numa das mais celebradas obras de referência francesa, podemos ler um artigo sobre Schoenberg: "Autor de obras audaciosas, escritas sem preocupação alguma com qualquer tipo de regra"! Este breve julgamento é encontrado sob o título Música, evidentemente escrito por um especialista.

A gaguejante obra recém-nascida será sempre considerada como um monstro, mesmo por aqueles que acham fascinante experimentar. É claro que haverá alguma curiosidade, alguns gestos de interesse, sempre algumas previsões para o futuro. E algum elogio; apesar de que o que é sincero sempre será endereçado aos vestígios do familiar, a todos aqueles vínculos dos quais a nova obra não se libertou e que desesperadamente tentam aprisioná-la ao passado.

Pois se as normas do passado servem para mensurar o presente, elas servem também para construí-lo. O próprio escritor, a despeito de seu desejo por independência, está situado no interior duma cultura intelectual e duma literatura que só pode ser aquela do passado. É impossível para ele escapar completamente desta tradição da qual ele é o produto. Às vezes, os próprios elementos aos quais ele mais se esforça em se opor, pelo contrário, florescem mais vigorosamente do que nunca na mesma obra pela qual ele esperava destruí-los; e ele será parabenizado, é claro, com alívio, por tê-los cultivado com tamanho zelo.

Assim, serão os especialistas em romance (romancistas ou críticos, ou leitores extremamente assíduos) que passarão por duras penas para se arrancarem do marasmo.

Mesmo o observador menos condicionado é incapaz de ver o mundo ao ser redor através de olhos despidos inteiramente de preconceitos. Não que tenha em mente, é claro, a preocupação ingênua por objetividade da qual analistas da alma (subjetiva) acham tão fácil rir. Objetividade, no sentido ordinário da palavra - total impessoalidade da observação - é obviamente uma ilusão. Mas liberdade de observação deveria ser possível, e ainda não o é. A cada momento, uma franja contínua de cultura (psicologia, ética, metafísica, etc.) é adicionada às coisas, dando-as um aspecto menos estranho, um que é mais compreensível, mais tranqüilizador. Algumas vezes, a camuflagem é completa: um gesto é banido de nossa mente, suplantado pela emoção que supostamente a produziu, e nós nos lembramos duma paisagem como austera ou calma, sem sermos aptos a evocar um único contorno, um único elemento determinante. Mesmo se nós imediatamente pensarmos, "Isto é literariedade", não tentamos reagir contra o pensamento. Nós aceitamos o fato que aquilo que é literário (a palavra se tornou pejorativa) funciona como uma grade, ou tela composta com pedaços de diferentes vidros coloridos que fracionam nosso campo de visão em pequenas facetas assimiláveis.

E se algo resiste a esta apropriação sistemática do visual, se um elemento do mundo quebra o vidro, sem encontrar lugar algum na tela interpretativa, sempre podemos utilizar nossa conveniente categoria do "absurdo", para absorvermos este incômodo resíduo.

Mas o mundo não é significante nem absurdo. Ele é, simplesmente. Em todo caso, esta é a coisa mais marcante sobre ele. E, repentinamente, a obviedade disto nos ataca com sua força irresistível. Duma vez só, toda a esplêndida construção desaba; abrindo, inesperadamente, nossos olhos, experimentamos, com demasiada freqüência, o impacto desta realidade teimosa que fingíamos dominar. Ao nosso redor, desafiando o nosso ruidoso maço de adjetivos animistas ou defensivos, as coisas estão aí. Suas superfícies são distintas e suaves, intatas, nem suspeitosamente brilhantes nem transparentes. Toda nossa literatura ainda não conseguiu erodir a menor de suas arestas, endireitar a menor de suas curvas.


As incontáveis versões cinematográficas de romances que abarrotam nossas telas de cinema fornecem uma ocasião para repetir este curioso experimento quantas vezes quisermos. O cinema, outro herdeiro da tradição psicologista e naturalista, tem geralmente como seu único propósito a transposição duma história em imagens: visa excluvisamente impôr ao espectador, pelo intermédio de algumas cenas bem escolhidas, o mesmo significado que as sentenças escritas comunicaram de seu próprio modo ao leitor. Mas, num determinado momento, a narrativa filmada pode nos arrastar para fora de nosso conforto interior e para dentro deste mundo proposto com uma violência não encontrada no texto correspodente, seja um romance ou um cenário.

Qualquer um pode perceber a natureza da mudança que ocorreu. No romance inicial, os objetos e os gestos constituindo a trama do enredo desapareceram completamente, deixando para trás apenas suas significações: a cadeira vazia torna-se apenas ausência ou expectativa, a mão sobre o ombro se torna um sinal de amizade, as barras na janela se tornam apenas a impossibilidade de partir... Mas, no cinema, -se a cadeira, o movimento da mão, a forma das barras. O que eles significam permanece óbvio, mas, ao invés de monopolizarem nossa atenção, tornam-se algo acessório, às vezes, algo em excesso, porque o que nos afeta, o que se mantém em nossa memória, o que aparece como essencial e irredutível a vagos conceitos intelectuais são os próprios gestos, os objetos, os movimentos, os contornos, aos quais a imagem restaurou, súbita (e não intencionalmente), a realidade.

Pode parecer peculiar que tais fragmentos de crua realidade, aos quais a narrativa filmada não contribui para apresentar, atinja-nos tão vividamente, enquanto que cenas idênticas na vida real não são suficientes para nos libertar de nossa cegueira. Na verdade, é como se as próprias convenções do meio fotogrático (duas dimensões, imagens em preto-e-branco, a moldura da tela, a diferença de escala entre as cenas) nos ajudasse a nos libertar de nossas convenções. O aspecto ligeiramente "incômodo" deste mundo reproduzido revela, ao mesmo tempo, o personagem incomodado do mundo que nos cerca; ele é também incômodo na extensão de que se recusa a se conformar aos nossos hábitos de apreensão e à nossa classificação.


Ao invés deste universo de "significação" (psicológica, social, funcional), devemos tentar, então, construir um mundo tanto mais sólido quanto mais imediato. Que seja, primeiro, por sua presença que os objetos e gestos se estabeleçam, e que esta presença continue a prevalecer sobre qualquer teoria explicativa que tente circunscrevê-los num sistema de referências, seja ele emocional, sociológico, freudiano, ou metafísico.

Neste futuro universo do romance, gestos e objetos estarão antes de serem uma coisa; e eles estarão aí posteriormente, sólidos, inalteráveis, eternamente presentes, pilheriando de seu próprio "sentido", aquele sentido que em vão tenta reduzí-los ao papel de precárias ferramentas, duma temporária e vergonha trama tecida exclusivamente - e deliberadamente - pela superior verdade humana expressa nele, apenas para expurgar imediatamente este desajeitado acessório para o esquecimento e obscurantismo.

De agora em diante, pelo contrário, os objetos perderão gradualmente sua instabilidade e seus segredos, renunciarão a seu pseudo-mistério, àquela suspeita interioridade que Roland Barthes chamou de "o coração romântico das coisas". Não mais os objetos serão a mera vaga reflexão da alma vaga do herói, a imagem de seus tormentos, a sombra de seus desejos. Aliás, se objetos ainda se permitirem ser uma muleta momentânea às paixões humanas, eles o farão apenas provisoriamente, e aceitarão a tirania das significações apenas na aparência - zombeteiramente, poderia-se dizer - para melhor mostrar quão alheios eles permanecem ao homem.

E, para os personagens romancescos, eles próprios podem sugerir muitas interpretações possíveis; eles podem, de acordo com a preocupação de cada leitor, acomodar todo tipo de comentários - psicológicos, psiquiátricos, religiosos, ou políticos -, mesmo que a indiferença deles a estas "potencialidades" logo se evidencie. Enquanto o herói tradicional é constantemente requisitado, apanhado, destruído por estas interpretações do autor, incessantemente projetado a um outro lugar imaterial e instável, sempre mais remoto e borrado, o herói do futuro permanecerá, em oposição, . Os comentários é que serão deixados em outro lugar; diante desta presença irrefutável, eles parecerão inúteis, supérfluos, até mesmo impróprios.


Dentre as histórias de detetive, "Exhibit X" nos dá, paradoxicalmente, uma clara imagem desta situação. A evidência colhida pelos inspetores - um objeto deixado na cena do crime, um movimento capturado numa fotografia, uma sentença ouvida por uma testemunha - parece, a princípio, exigir uma explicação, para existir apenas em relação a seu papel no contexto que a sobrepuja. E as teorias já começam a tomar forma: o magistrado encarregado tenta estabelecer uma ligação lógica e necessária entre as coisas; parece que tudo será resolvido num banal entulho de causas e conseqüências, intenções e coincidências...

Mas a história começa a se proliferar de maneira perturbadora: testemunhas se contradizem, acusados apresentam vários álibis, novas evidências que não foram consideradas aparecem... E acabamos voltando até a evidência gravada: a exata posição duma peça de mobília, a forma e freqüência duma impressão digital, uma palavra esgaratujada numa mensagem. Nós temos montada uma sensação de que nada mais é verdadeiro. Mesmo que possa esconder um mistério, ou traí-lo, estes elementos que compõem uma zombaria de sistemas têm apenas uma qualidade séria, óbvia, que é a de estar aí.

O mesmo é verdadeiro para o mundo ao nosso redor. Pensamos controlá-lo ao assinalar um sentido, e toda a arte do romance, em particular, parecia dedicada a esta empresa. Mas esta era apenas uma simplificação ilusória; e longe de se tornar mais claro e mais próximo por causa dele, o mundo apenas perdeu, pouco a pouco, toda sua vida. Posto que é principalmente em sua presença que a realidade do mundo reside, nossa tarefa é agora criar uma literatura que leve tal presença em consideração.


Tudo isto pode parecer muito teórico, muito ilusório, se algo não estivesse, de fato, mudando - mudando completamente, definitivamente - em nossas relações com o universo. É por isto que nós vislumbramos uma resposta à velha questão irônica, "Por que agora?" Há, na verdade, um novo elemento hoje que nos separa radicalmente, neste tempo, tanto de Balzac, como de Gide ou de Mme. de La Fayette: é a destituição dos velhos mitos de "profundidade".

Sabemos que toda a literatura romanesca foi baseada nestes mitos, e neles apenas. O papel tradicional do escritor consistia em escavar a Natureza, cavar cada vez mais fundo para alcançar algum estrato mais íntimo, em desaterrar, finalmente, algum fragmento dum segredo desconcertante. Após haver descido até o abismo das paixões humanas, ele enviaria ao mundo aparentemente tranqüilo (o mundo da superfície) mensagens triunfantes, descrevendo os mistérios que ele tocou, de fato, com suas próprias mãos. E a vertigem sagrada então sofrida pelo leitor, longe de causar-lhe angústia ou náusea, reassegura-lhe seu poder de dominação sobre o mundo. Havia abismos, certamente, mas graças a tais valentes espeleologistas, suas profundezas puderam ser ouvidas.

Não surpreende que, dadas tais condições, o fenômeno literário por excelência tenha residido completamente num único adjetivo, que tentou unir todas suas qualidades interiores, toda a alma escondida das coisas. Assim, a palavra funcionava como uma armadilha na qual o escritor capturava o universo na intenção de entregá-lo à sociedade.

A revolução que ocorreu é esta: não apenas não consideramos o mundo como nosso, nossa propriedade privada, projetado de acordo com nossas necessidades e prontamente domesticado, como nem mesmo mais acreditamos em sua "profundidade". Enquanto concepções essencialistas do homem se deparam com sua destruição, a noção de "condição", de agora em diante, substitui o de "natureza", a superfície das coisas cessa de ser para nós uma máscara de seu coração, um sentimento que conduz a todo tipo de transcendência metafísica.

Assim, é toda a linguagem literária que deve mudar, e já está mudando. Dia após dia, testemunhamos um crescente nojo, sentido pelas pessoas de maior consciência, a palavras de característica visceral, analógica ou enfeitiçante. Por outro lado, o adjetivo visual ou descritivo, a palavra que se contenta em mensurar, localizar, limitar, definir, indica uma dificuldade, mas, mais provavelmente, uma direção para nova arte do romance.

(1956)


ROBBE-GRILLET, Alain, For a New Novel, Essays on Fiction. New York: Grove Press, 1965. p. 15-24

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